AULA MAGNA O ministro Barroso deu uma lição: esperar a última instância
é procrastinar e não punir (Crédito: Marcos Bizzotto)
Publicado originalmente no site da revista ISTOÉ, em 06/04/18
Um voto para a história
O ministro do STF Luís Roberto Barroso lavou a alma dos
brasileiros, ao dissecar magistralmente a realidade do País, durante análise do
processo de Lula
Por Tábata Viapiana
“Criamos um país de ricos delinquentes”. Essa foi apenas uma
das intervenções lapidares do ministro do STF Luís Roberto Barroso, durante o
julgamento do mérito do habeas corpus de Lula na quarta-feira 4. Num voto
histórico, com uma análise avassaladora sobre a situação do Brasil, o ministro
fez a defesa firme da prisão após a condenação em segunda instância e deu uma
verdadeira aula sobre o sistema penal brasileiro. Criticou a lentidão do Poder
Judiciário e seus recursos intermináveis, que levam à prescrição de crimes, e,
por consequência, geram a impunidade. Reclamou que, no Brasil, sempre foi muito
difícil prender corruptos e isso só mudou graças ao entendimento da prisão em
segundo grau. Num mea culpa da Justiça, afirmou que o sistema foi criado para
“prender meninos pobres”, deixando os ricos impunes. Ao final, foi incisivo:
“Eu não quero deixar um País assim para os meus filhos. Um paraíso de
homicidas, estupradores e corruptos. Me recuso a participar, sem reagir, de um
sistema de justiça que não funciona”.
Barroso parecia empenhado em lavar a alma dos brasileiros,
tocando numa ferida raras vezes escancarada em público. Ao votar para indeferir
o habeas corpus ao petista, o ministro falou com maestria sobre os malefícios
da corrupção e sobre o quanto a prisão em segunda instância é fundamental para
combater os crimes de colarinho branco. “Se mudarmos esse entendimento, será a
renovação do pacto oligárquico de saque do Estado brasileiro”. Ele também
apresentou dados para embasar seu posicionamento e mostrar que a prisão em
segundo grau não fere a presunção de inocência. Entre 2009 e 2016, quando o STF
só permitia a prisão após o trânsito em julgado, foram apresentados mais de 25
mil recursos extraordinários com apenas nove casos que levaram à absolvição dos
réus. Portanto, aguardar-se o trânsito em julgado do recurso extraordinário
produz impacto de 1,12% em favor da defesa, sendo que apenas 0,035% de
absolvições.
“É impunidade mesmo”
No voto que durou cerca de uma hora, a impunidade, uma chaga
histórica do País, mereceu menção especial de Barroso. “No Brasil, não se
prende quem deveria ser preso de verdade. Isso não é apenas sentimento de
impunidade, é impunidade mesmo”, disse. “Um sistema judicial que não funciona,
faz as pessoas pensarem que o crime compensa”. Ele citou exemplos de casos que
se arrastaram por décadas na Justiça, entre eles, o do jornalista Pimenta
Neves, que matou sua namorada Sandra Gomide em 2000 e do ex-jogador de futebol
Edmundo, que provocou um acidente em 1995, enquanto dirigia embriagado,
deixando três jovens mortos. O caso de Edmundo prescreveu em 2011 após uma
infinidade de recursos protelatórios impetrados por sua defesa. “Não basta as
famílias terem que conviver até hoje com a dor da perda de um ente querido,
ainda podem assistir a esse ex-jogador comentando partidas de futebol em um
canal de televisão”, disse Barroso.
O episódio do fazendeiro Omar Coelho Vitor, de Passos(MG),
que disparou 5 tiros contra Dirceu Moreira Brandão Filho, em 1991, ganhou
realce. Ele foi condenado a 7,6 anos, mas apelou para não ir preso até o
julgamento em instância final, no STF. Com base nisso, o tribunal decidiu, em
2009, que o preso poderia aguardar o julgamento em liberdade, criando a
jurisprudência, mudada em 2016. Agora, a prisão pode acontecer após a segunda
instância. O recurso do fazendeiro mineiro ficou 12 anos nas gavetas do STJ e o
crime prescreveu em 2014. Ele nunca foi preso. Ao iluminar o caso, o ministro
quis mostrar que a impunidade é consagrada quando a prisão só vale após a
última instância. E se desenvolve no Brasil uma cultura de procrastinação que
oscila entre o absurdo e o ridículo: “Um sistema em que os processos se
eternizam, gerando longa demora até a punição adequada, prescrição e
impunidade. Um sistema penal desmoralizado não serve a ninguém: nem à
sociedade, nem ao Judiciário, nem aos advogados”.
“Nós não prendemos os verdadeiros bandidos do Brasil”
“não usem os pobres”
A “operação abafa” destinada a frear a Lava Jato fez com que
ele classificasse os envolvidos no esquema em duas categorias: a dos que não
querem ser punidos pelos malfeitos cometidos ao longo de muitos anos, “e um
lote pior”, que é o dos que não querem ficar honestos “nem daqui para frente”.
Um dos pontos altos da explanação de Barroso foram as respostas ao ministro
Gilmar Mendes, que afirmou que os pobres eram os maiores prejudicados pelo
entendimento da prisão em segunda instância. Barroso tocou o cerne da questão:
“Não usem os pobres”, pois “pobres são presos antes da primeira instância e
ficam lá mofando sem que quase ninguém se preocupe com eles”. “Há pessoas que
vêem um pobre na calçada e atravessam a rua, e aí chegam aqui e dizem ‘ó, os
pobres são prejudicados”, concluiu. Foi um voto para aplaudir de pé. A Justiça,
enfim, saiu dignificada.
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