Imagens e informações dos santinhos são meramente
ilustrativas (Foto: Dulla)
Publicado originalmente no site da revista Galileu, em 28/09/2018
A democracia morreu, viva a democracia!
Você está de saco cheio da política e de quem está nela?
Pois não está sozinho. Em crise no mundo todo, a democracia representativa aos
poucos vê surgirem alternativas que reaproximam os eleitores — sem cair no
autoritarismo
Por Ronaldo Bressane
Um espectro ronda nosso planeta: é o espectro da democracia
moribunda. A crise de legitimidade na democracia representativa, expressão
frequente na boca de sociólogos e filósofos, pode ser traduzida por cidadãos de
saco cheio do sistema político: sempre os mesmos partidos, as mesmas eleições.
E esses cidadãos — nós — querem descobrir novas maneiras de chegar ao poder.
A crise da democracia se revela em fenômenos massivos e em
estudos e observações de cientistas e historiadores políticos de diferentes
vertentes. O que ainda não se vê muito claro no horizonte — e parece que a
miopia da maioria da classe política contribui para essa neblina — é o que
fazer para que o cidadão insatisfeito volte a se interessar ativamente pela
política, antes que a democracia seja substituída por algo muito pior do que os
totalitarismos do século 20.
“A democracia está em estado de choque”, anotou Marcos Nobre
em Choque de Democracia (Companhia das Letras), escrito a quente depois do
junho de 2013. “As reivindicações e passeatas se multiplicam, levantando
problemas de bairro e de rua, problemas locais, regionais, nacionais, mundiais,
tudo ao mesmo tempo. As demandas vêm de todos os lugares, colocam-se em
diferentes alcances e não têm unidade nem organização unitária. Mas hoje a
fragmentação é ainda maior: desapareceu a unidade forçada do progressismo como
pano de fundo das formulações, incluindo forças políticas conservadoras”,
diagnosticou o professor de filosofia da Unicamp.
Em Ruptura (Zahar), lançado há poucos meses, o sociólogo
espanhol Manuel Castells detalha esse raio-X. “Existe uma crise mais profunda:
a ruptura da relação entre governantes e governados. A desconfiança nas
instituições, em quase todo o mundo, deslegitima a representação política e,
portanto, nos deixa órfãos de um abrigo que nos proteja em nome do interesse
comum”, escreve. Segundo Castells, não é uma questão de opções políticas, de
direita ou de esquerda. A ruptura é profunda, tanto em nível emocional quanto
cognitivo.
Diante desse vazio, a ascensão do populismo surge como o
centro do debate político. Em um dos livros de ciência política mais comentados
dos últimos tempos, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt tentam compreender como a
eleição de Donald Trump está corroendo o sistema político norte-americano e
pode levá-lo à autodestruição. Para eles, o atalho para a autodestruição é a
eleição de demagogos, que se transformam em políticos autoritários. “Demagogos
extremistas surgem de tempos em tempos em todas as sociedades, mesmo em
democracias saudáveis”, escrevem em Como as Democracias Morrem (Zahar).
Polarizações
“O enfraquecimento das normas democráticas está enraizado na
polarização sectária extrema — uma polarização que se estende além das
diferenças políticas e adentra conflitos de raça e cultura. A polarização mata
democracias.” A dupla de cientistas políticos está falando de republicanos
versus democratas, mas o raciocínio polarizador estende-se a demandas de todo o
mundo, conforme cita o brasileiro Pablo Ortellado. “Todas as sociedades estão
se polarizando”, afirma o professor de gestão de políticas públicas da USP. Ele
cita, além da sociedade brasileira, a norte-americana (com a ascensão de Trump)
e a britânica (com a vitória do Brexit) como exemplos do fenômeno. Segundo o
pesquisador, os motivos desse fenômeno ainda não estão claros, mas têm acontecido
depois de crises nos países. O professor diagnostica que as sociedades estão
“hipermobilizadas” e que um lado do espectro político tem “medo” do outro. O
desafio é criar a renovação política evitando esse sentimento de pânico em
relação ao “outro lado”.
Essa sociedade hipermobilizada é usada por “alguém que vem
de fora para corrigir o sistema”. O elenco de falsos outsiders inclui Hitler,
Mussolini, Fujimori, Chávez. Todos chegaram ao poder a partir de dentro, via
eleições ou alianças políticas poderosas. “As elites acreditaram que o convite
para exercer o poder conteria o outsider, levando a uma restauração do controle
pelos políticos estabelecidos; mas seus planos saíram pela culatra”, contam
Levitsky e Ziblatt. “Uma mistura letal de ambição, medo e cálculos equivocados
conspirou para levá-las ao mesmo erro: entregar condescendentemente as chaves
do poder a um autocrata em construção.”
E como identificar um político que, tão logo assuma o poder,
tentará dissolver os instrumentos democráticos? Para a dupla de cientistas, que
estudou todos os autocratas dos séculos 20 e 21, de Hitler a Duterte, passando
por Perón e Putin, há quatro principais indicadores: 1) rejeição das regras
democráticas do jogo; 2) negação da legitimidade dos oponentes políticos; 3)
tolerância ou encorajamento à violência; 4) propensão a restringir liberdades
civis de oponentes, inclusive a mídia. Se observar esses traços em um
candidato, há grandes chances de que, se eleito, você não vote nas próximas
eleições — porque elas nem existirão...
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Trecho da reportagem de capa da edição de outubro da revista GALILEU
Texto e imagem reproduzidos do site: revistagalileu.globo.com
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