JEAN-PHILIPPE KSIAZEK AFP
Publicado no site Brasil El País, em 13 de dezembro de 2018
Se não lutarmos
por tudo, não teremos nada
Em 10 de dezembro de 1948, 58 países concordaram sobre como
poderíamos viver em liberdade, igualdade e dignidade. Apesar dos avanços,
direitos econômicos e sociais geralmente são ignorados.
Por Kumi Naidoo
Já percorremos um longo caminho desde que foram acordados os
30 grandes direitos e liberdades da Declaração Universal em dezembro de 1948.
Ainda hoje, esses direitos estabelecem a visão mais avançada do que nosso mundo
poderia ser. Ao nos aproximarmos de seus 70 anos, eu deveria estar escrevendo
um texto de comemoração sobre o quanto alcançamos juntos nessas décadas – o
que, incontestavelmente, fizemos – para fazer dessa visão uma realidade.
Entretanto, a verdade é que em 2018 vemos o crescimento da
intolerância, da desigualdade extrema e o fracasso dos governos em tomar as
ações coletivas necessárias para enfrentar as ameaças globais. Nós nos encontramos
na exata situação em que os governos que adotaram a Declaração prometeram
evitar. Longe de ser um momento de celebração, acredito que deveríamos usar
esse marco histórico para fazer um balanço e reorientar a luta para tornar os
direitos humanos uma realidade para todas e todos.
O Segundo artigo da Declaração Universal explica que esses
direitos pertencem a todos nós – sejamos ricos ou pobres, independentemente do
país em que vivemos, qualquer que seja o sexo ou a cor, independentemente da
língua que falamos, o que pensamos ou nossas crenças.
Essa universalidade não se tornou realidade e vemos que esse
princípio fundamental, subjacente a todos os direitos humanos, está sob ataque.
Nós e outras organizações de direitos humanos destacamos repetidamente como
narrativas de culpa, ódio e medo assumiram proeminência global a um nível não
visto desde 1930.
A vitória de Jair Bolsonaro – apesar de seus planos
abertamente anti-direitos humanos –, nas eleições no Brasil, no fim de outubro,
ilustra de maneira vívida os desafios que enfrentamos. A sua nomeação como
presidente do Brasil representa uma grande ameaça aos povos indígenas e
quilombolas, comunidades rurais tradicionais, pessoas LGBTI, jovens negros,
mulheres, ativistas e organizações da sociedade civil, se lhe for permitido
transformar sua retórica desumanizante em política pública.
Conectado e indivisível
Devemos nos perguntar porque nos encontramos na exata
situação em que a Declaração pretendia evitar, com os direitos humanos sendo
atacados e rejeitados por proteger o ‘outro’ em vez de todos nós? Os motivos
são complexos, mas uma coisa é certa. Pelo menos parte da culpa está no nosso
fracasso em retratar os direitos humanos como um pacote inerentemente unido e indivisível,
sendo relevante para todas e todos.
A Declaração não fez distinção do direito civil, cultural,
econômico, político e social. Não diferenciou entre a necessidade de realizar o
direito à alimentação e garantir o direito à liberdade de expressão. Reconheceu
a realidade de que – como bem sabemos – os dois são intrinsecamente ligados.
Nas décadas que se seguiram, governos criaram a divisão entre os dois conjuntos
de direitos e um desequilíbrio na forma como eram percebidos e protegidos.
Organizações internacionais de direitos humanos, incluindo a
Anistia Internacional, também devem assumir alguma responsabilidade por esse
desequilíbrio. Somos mais conhecidos como uma organização que faz campanhas por
prisioneiros de consciência – pessoas aprisionadas por quem são ou pelo que
acreditam – e pelo nosso trabalho contra a tortura, pelo fim da pena de morte e
pela liberdade de expressão.
Nós só começamos a monitorar ativamente e fazer campanha por
direitos econômicos, sociais e culturais nos anos 2000. Desde então,
desenvolvemos um corpo global de trabalho que desafia as violações dos direitos
à moradia, saúde e educação. Sabemos que ainda há muito a ser feito.
O exemplo da importância disso como uma questão de direitos
humanos é o resultado de longo prazo da crise financeira global. A experiência
de muitos países europeus demonstrou quão vulneráveis ou praticamente
inexistentes são nossas proteções sociais básicas. Para piorar a situação, as
proteções legais para os direitos econômicos e sociais geralmente são limitadas
nesses países, o que significa que as pessoas não são capazes de contestar
legalmente as violações de direitos.
Em muitos países, os governos escolheram responder às crises
financeiras com a introdução de programas de austeridade. Esses programas
tiveram custos devastadores e prejudicaram o acesso das pessoas às necessidades
básicas, incluindo assistência médica, moradia e alimentação.
“Não posso viver com a dor”
A Espanha é um exemplo proeminente disso, dado que o governo
reduziu gastos públicos, inclusive em saúde, após a crise financeira. Isso
levou a um atendimento de qualidade menos acessível e mais caro. Os impactos
têm sido negativos para as pessoas de baixa renda, especialmente aquelas com
condições crônicas de saúde, pessoas com deficiência e em cuidados de saúde
mental.
Um homem que entrevistamos para o nosso relatório sobre o
assunto nos disse que foi forçado a escolher entre comprar comida ou comprar
remédios, porque os cuidados de saúde se tornaram muito caros: “Não posso viver
com a dor, eu preciso tomar meus remédios. Ou eu tomo meus remédios, ou eu me
mato [por causa da dor] ... então, se eu tiver que passar fome, eu passo,
porque preciso comprar remédios”.
A resposta dos governos às mobilizações públicas contra as
medidas de austeridade também prova a indivisibilidade dos direitos civis,
políticos, econômicos, sociais e culturais – você não pode ter um sem ter o
outro. No Chade, sabemos que as medidas de austeridade implementadas pelas
autoridades estavam empurrando as pessoas para uma pobreza mais profunda. O
acesso aos cuidados de saúde fundamentais foi prejudicado e a educação
restrita.
Houve protestos e greves generalizadas em todo o Chade em
resposta ao impacto das medidas de austeridade do governo. Em vez de ouvir a
população, o governo preferiu responder acabando com qualquer dissidência. Usou
de força excessiva contra os manifestantes e os prendeu, minando assim seu
direito de reunião pacífica.
Embora a crise financeira global pareça ter ficado para
trás, ainda estamos lidando com as consequências sociais e econômicas anos
depois. As experiências de desigualdade, corrupção, desemprego e estagnação
econômica provaram ser um terreno fértil para que líderes divisionistas
divulguem mensagens de discórdia e de ódio. Isso tem tido consequências
explosivas.
‘Inclinando em direção a extremos’
O presidente francês Emmanuel Macron tentou se posicionar
contra o surgimento dessa espécie de política de divisão que está se
enraizando. “A Europa está se inclinando quase em todo lugar para os extremos
e, mais uma vez, está dando lugar ao nacionalismo. Precisamos de toda nossa
energia para ter sucesso. Tenho confiança em nós”, disse Macron em um discurso
público em outubro.
No entanto, na França, as pessoas estão levantando sérias
preocupações em relação às políticas de Macron sobre direitos trabalhistas,
pensões e acesso à universidade. A Anistia Internacional já documentou como as
autoridades francesas restringiram o direito das pessoas de protestar se
apoiando em leis de estado de emergência. Como resultado, vimos ambientalistas,
defensores de direitos trabalhistas e outros serem proibidos de participar de
protestos sem justificativa. Em 2018, protestos pedindo leis que se respeitem
os direitos econômicos, sociais e culturais são, na melhor das hipóteses,
ignorados pelo presidente francês ou, na pior das hipóteses, reprimidos
violentamente pela polícia.
É um padrão que vemos em todo o mundo. Precisamos
urgentemente responsabilizar os governos por sua incapacidade de implementar
suas obrigações em relação a todos os direitos, não importa como eles sejam
categorizados. Se formos bem-sucedidos em tornar isso uma realidade, devemos ir
além da campanha pelo direito das pessoas de falar e protestar, temos que dar
atenção para o que elas estão falando.
Lembremos de Jamal Khashoggi, o jornalista da Arábia Saudita
que foi brutalmente assassinado em outubro no consulado saudita na Turquia.
Como muitos defensores de direitos humanos do país, ele foi alvo do Estado
porque escolheu exercer sua liberdade de expressão, dizer publicamente o que
pensa. Em seu último artigo para o Washington Post, Khashoggi escreveu sobre
como seus companheiros árabes são incapazes de discutir abertamente as questões
que afetam suas vidas cotidianas, por causa de uma repressão à liberdade de
expressão: “Sofremos de pobreza, má administração e má educação. Através da
criação de um fórum internacional independente, isolado da influência dos
governos nacionalistas que espalham o ódio através da propaganda, as pessoas
comuns no mundo árabe seriam capazes de resolver os problemas estruturais que
suas sociedades enfrentam”.
Direitos humanos são tudo ou nada
Khashoggi captou perfeitamente porque os direitos humanos
são um pacote. A liberdade de expressão é essencial porque nos permite exigir
nossos outros direitos, mas ter liberdade de expressão não é suficiente. É
exatamente por isso que durante a Primavera Árabe, em 2011, as pessoas saíram
sob a bandeira “pão, liberdade e justiça”.
O que ainda falhamos em compreender hoje é algo tão dolorosamente
óbvio para as pessoas que estavam na Praça Tahir, no Egito, há sete anos: que
os direitos humanos são, verdadeiramente, tudo ou nada. Ou você é capaz de
exercer todos os seus direitos, ou você não tem nada. O que precisa acontecer
agora, se quisermos fazer um grande avanço em tornar os direitos humanos uma
realidade para todas e todos, é óbvio e urgente.
Como um movimento de direitos humanos, não só temos que
continuar defendendo os direitos das pessoas de falar livremente e protestar,
como devemos conectar os pontos entre as decisões econômicas e financeiras que
nossos governos tomam e seu impacto sobre os direitos humanos. Precisamos
colaborar com organizações parceiras para exigir responsabilidade por onde o
dinheiro está indo, para desafiar a corrupção, os fluxos financeiros ilícitos e
as frágeis estruturas tributárias globais. Como Khashoggi disse, nós temos que
desafiar as questões estruturais que nossas sociedades estão enfrentando.
Este é um empreendimento enorme e só é possível se todos nos
unirmos e construirmos coalizões com amigos e parceiros em todos os movimentos
– ativistas de direitos humanos, advogados, sindicatos, movimentos sociais,
economistas e líderes religiosos. E com nossos amigos em todas as regiões,
devemos garantir que as vozes daqueles que precisam ser ouvidos sejam mais
altas e amplificadas. Somente através da solidariedade poderemos realizar um
mundo sem desigualdade e injustiça e que corresponda aos compromissos assumidos
na Declaração.
Kumi Naidoo é secretário geral da Anistia Internacional
Publicado originalmente em francês no Le Monde Diplomatique.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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