Vista do Congresso Nacional, em Brasília.
Publicado originalmente no site Brasil El País, em 2 de dezembro de 2018
Um novo caminho
Por Fernando Henrique Cardoso
Qualquer tentativa de reconstruir o que desabou no sistema
político e de emergir algo novo passa pela autocrítica dos partidos, começando
pelo PT, sem eximir o PMDB e tampouco o PSDB e os demais.
A última eleição foi um tsunami que varreu o sistema político
brasileiro. Terminou o ciclo político-eleitoral iniciado depois da Constituição
de 1988. Ruiu graças ao modo pelo qual se formaram os partidos, o sistema de
voto e o financiamento das campanhas. A vitória da candidatura Bolsonaro
funcionou como um braço cego da História: acabou de quebrar o que já estava em
decomposição. Há muitos cacos espalhados e há a necessidade de reconstrução.
Ela será feita pelo próximo governo? É cedo para dizer.
O sistema político-partidário não ruiu sozinho. As fraturas
são maiores. Antes, o óbvio: a Lava Jato mostrou as bases apodrecidas que
sustentavam o poder, sacudiu a consciência do eleitorado. Qualquer tentativa de
reconstruir o que desabou e de emergir algo novo passa pela autocrítica dos
partidos, começando pelo PT, sem eximir o PMDB e tampouco o PSDB e os demais.
Na sua maioria, os “partidos” são sopas de letras e não agremiações baseadas em
objetivos e valores. Atiraram-se na captura do erário, com maior ou menor gula.
Visto em retrospectiva é compreensível que um sistema
partidário sem atuação na base da sociedade desmonte com aplausos populares. Os
mais pobres encontram nas igrejas evangélicas – e em muito menor proporção na
igreja católica e em outras religiões –
recursos para se sentirem coesos e integrados. O povo tem a sensação de
que os parlamentos e os partidos não atendem aos seus interesses. O eleitorado,
contudo, não desistiu do voto e imaginou que talvez algo “novo”, inespecífico,
poderia regenerar a vida pública.
Não foi só isso que levou à vitória o novo presidente. Basta
conhecer mais de perto a vida dos mais pobres nas favelas e nas periferias
carentes de quase tudo para perceber que pedaços importantes do território
vivem sob o domínio do crime organizado, violência que não se limita a essas
populações, pois alcança partes significativas da população urbana e rural.
Inútil imaginar outros motivos para a vitória “da direita”.
Não foi uma direita ideológica que recebeu os votos. Estes foram dados mais
como repulsa a um estado de coisas em geral e ao PT em particular. O governo
foi parar em mãos mais conservadoras e mesmo de segmentos abertamente
reacionários não pelas propostas ideológicas que fizeram, e sim pelo que eles
simbolizaram: a ordem e a luta contra a corrupção. Não venceu uma ideologia,
venceu o sentimento de que é preciso por ordem nas coisas, para estancar a
violência e a corrupção e tentar retornar a algum tipo de coesão social e
nacional.
Enganam-se os que pensam que o “fascismo” venceu. Enganam-se
tanto quanto os que vêm o “comunismo” por todos os lados. Essa polarização
marcou a pugna política em outra época de antes da Segunda Grande Guerra, ao
fim da qual foi substituída pela polarização entre capitalismo liberal e
socialismo.
Os problemas básicos do país continuarão a atazanar o povo e
o novo governo. Este não será julgado nas próximas eleições por sua ideologia
“direitista”, mas por sua capacidade, ou não, para retomar o crescimento,
diminuir o desemprego, dar segurança à vida das pessoas, melhorar as escolas e
hospitais e assim por diante.
Com isso não quero justificar a “direita” dizendo que se for
capaz de bem governar vale a pena apoiá-la, mas também não posso endossar a
“esquerda”, quando ela deixa de reconhecer seus erros, conclama a votar contra
tudo que o novo governo propuser, sem considerar o que realmente conta: quais
os efeitos para o bem-estar das pessoas, para o fortalecimento dos valores
democráticos e para a prosperidade do país.
As mudanças pelas quais passamos, aqui e no mundo, são
inúmeras e profundas. Pode-se mesmo falar em uma nova “era”, a da
conectividade. Se houve quem escrevesse “cogito, ergo sum” (penso, logo
existo), como fez Descartes, se depois houve quem dissesse que o importante é
saber que “sinto, logo existo”, em nossa época, sem que essas duas afirmativas
desapareçam, é preciso adicionar: “estou conectado, logo existo”. Vivemos a era
da informática, das comunicações e da inteligência artificial que sustentam o
processo produtivo e formam redes entre as pessoas.
As novas tecnologias permitem formas inovadoras de enfrentar
os desafios coletivos, assim como acarretam alguns inconvenientes, como a
dificuldade de gerar empregos, a propagação instantânea das fakenews, a formação
de ondas de opinião que mais repetem um sentimento ocasional do que expressam
um compromisso com políticas a serem sustentadas em longo prazo. Elas dependem
de instituições, partidos, parlamentos e burocracias para serem efetivas.
As questões centrais da vida política não se resumem no
mundo atual à luta entre esquerda e direita. No passado, o espectro político
correspondia a situações de classe, interpretadas por ideologias claras,
assumidas por partidos. Na sociedade contemporânea, com a facilidade de
relacionamento e comunicação entre as pessoas, os valores e a palavra voltaram
a ter peso para mobilizar politicamente. Isso abre brechas para um novo
populismo e uma exacerbação do personalismo. O desafio está em recriar a
democracia. O que chamo de um Centro Radical começa por uma mensagem que
envolva os interesses e sentimentos das pessoas. E esta mensagem para ser
contemporânea não deve estancar num palavreado “de direita”, nem “de esquerda”.
Deve, a despeito das divergências de classe que persistem, buscar o interesse
comum capaz de cimentar a sociedade. O pais não se unirá com o ódio e a
intransigência cultural existentes em alguns setores do futuro governo.
Há espaço para propostas que juntem a modernidade ao
realismo e, sem extremismos, abra um caminho para o que é novo na era atual.
Este percurso deve incorporar a liberdade, especialmente a das pessoas
participarem da deliberação dos assuntos públicos, e a igualdade de
oportunidades que reduza a pobreza. E há de ver na solidariedade um valor. Só
juntos poderemos mais.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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