Thomas Piketty era um economista desconhecido até mesmo
por
seus pares até lançar em inglês, em 2014, o livro que
colocou o tema da
desigualdade na agenda global.
Foto: The Asahi Shimbun / Getty Images
Publicado originalmente no site da revista ÉPOCA, 04 de
outubro de 2019
Como desatar o nó da desigualdade, pela visão de Thomas
Piketty
Em novo livro publicado na França, o economista lança as
bases do que ele chama de “socialismo participativo” e explica por que o Brasil
continua tão iníquo
Por Fernando Eichenberg, de Paris
O francês Thomas Piketty é autor de um dos mais improváveis
best-sellers do século XXI. Até 2014, o professor da Paris School of Economics
era um desconhecido mesmo entre a maioria de seus pares. Foi em março daquele
ano que a versão em inglês de seu O capital no século XXI , um calhamaço de
quase 700 páginas publicado um ano antes na França, chegou às livrarias
americanas e vendeu tanto e tão rápido que logo esgotou. De lá para cá, o livro
foi traduzido para cerca de 40 idiomas, atingiu a marca de mais de 2,5 milhões
de exemplares vendidos e transformou Piketty no economista mais pop do mundo.
Como até quem não leu o livro sabe, na obra ele defende a tese de que o
capitalismo é, a longuíssimo prazo, concentrador de renda. Com um extenso
levantamento sobre renda e riqueza que volta mais de 100 anos — principalmente
em cinco nações ricas —, ele sustenta que o retorno sobre o capital — o que inclui
investimentos financeiros, propriedades, terras e máquinas — é maior do que o
da economia como um todo. Ou seja, para Piketty, quem tem muito sempre acaba
ganhando mais. Até mesmo economistas que não concordam com o francês reconhecem
que é dele o crédito por colocar o tema da desigualdade no topo da agenda
mundial.
Agora, Piketty está vindo para uma espécie de segundo round.
Capital e ideologia , livro que acabou de ser lançado em francês, tem 1.232
páginas e já está causando polêmica (a previsão é que seja publicado no Brasil
no ano que vem). Na nova obra, Piketty amplia o número de países pesquisados,
incluindo emergentes como Brasil, China e Índia, e sustenta que as desigualdades
são resultado de escolhas políticas e ideológicas. Discursos relacionados à
economia e às tecnologias, diz Piketty, retratam a disparidade de renda como
algo natural e inevitável. O livro é, num primeiro momento, uma tentativa de
descrever o que o autor vê como a história dos sistemas de justificação e de
estruturação da desigualdade social. Mas seu objetivo é romper com o que
Piketty chama de fatalismo que alimenta o statu quo e abrir os caminhos para
sua superação. “Se não transformarmos profundamente o sistema econômico atual
para torná-lo menos desigual, mais justo e durável, tanto entre países como em
cada país, o ‘populismo’ xenófobo e seus possíveis sucessos eleitorais poderão
muito rapidamente deflagrar o movimento de destruição da globalização
hipercapitalista e digital dos anos 1990-2020”, alerta no livro.
Quem está achando o texto de Piketty em linha com o discurso
de alguns pré-candidatos do Partido Democrata americano à Presidência, como
Elizabeth Warren, acertou em cheio. O economista francês é fã da proposta de
taxar grandes fortunas nos Estados Unidos.
No Brasil, Piketty comprou uma briga com setores do Partido
dos Trabalhadores (PT) há alguns anos ao contradizer a tese petista de que a
desigualdade social havia caído no Brasil nas últimas décadas com o ganho de
renda dos mais pobres e a perda dos mais ricos. No novo livro, o economista
volta à carga. Um dos principais problemas, segundo ele, é que a melhora da
situação das pessoas de baixa renda foi feita inteiramente em detrimento das
classes médias, mais precisamente dos grupos sociais situados entre os 50% mais
pobres e os 10% mais ricos. Mais: não houve nenhuma desvantagem aos 10% mais
ricos, que conseguiram manter sua posição, já incomumente elevada no Brasil,
diz ele. “Tratando-se do 1% mais rico, se observa, inclusive, entre 2002 e
2015, um aumento de sua parte na renda total, que se mantém duas vezes mais
alta do que a fatia relativa aos 50% mais pobres. Esses resultados
decepcionantes e paradoxais se explicam simplesmente: o PT nunca fez uma
verdadeira reforma fiscal. As políticas sociais foram financiadas pelas classes
médias, e não pelas mais ricas, pela boa e simples razão de que o PT jamais
conseguiu combater a regressão fiscal estrutural do país, com pesados impostos
e taxas indiretas sobre o consumo (indo, por exemplo, até 30% nas faturas de
eletricidade), enquanto os impostos progressivos sobre as rendas mais altas e
os patrimônios são, historicamente, pouco desenvolvidos.”
“O FRANCÊS THOMAS PIKETTY SE TORNOU UM DOS ECONOMISTAS MAIS
POP DO MUNDO AO PUBLICAR ‘O CAPITAL NO SÉCULO XXI’, QUE VENDEU 2,5 MILHÕES DE
CÓPIAS”
Traduzindo o economês do livro, no Brasil a maior parte dos
impostos incide sobre o consumo, e não sobre a renda ou o patrimônio. Como as
pessoas com menos renda tendem a gastar a maior parte de seus recursos com
consumo, a tributação fica mais pesada para quem ganha menos. Os especialistas
chamam isso de tributação regressiva. Um parêntese que não está no livro: as
principais propostas de reforma em estudo atualmente no Congresso simplificam o
sistema tributário, mas não atacam essa questão integralmente. Para corrigir
essa situação, o país teria de seguir o exemplo de nações mais ricas e aumentar
a taxação sobre a renda e o patrimônio, o que não está certo que acontecerá. O
diagnóstico de Piketty sobre o atraso do Brasil em seguir um modelo de
tributação mais redistributivo aponta “limitações doutrinais e ideológicas”,
mas também a “ausência de uma maioria parlamentar adequada”: “No Brasil, como
na Europa e nos Estados Unidos, é impossível reduzir as desigualdades tanto
quanto seria desejável sem transformar igualmente o regime político,
institucional e eleitoral”, escreve o economista.
Segundo Piketty, em 2018, a parte que os 10% mais ricos
abocanhavam da renda total atingia 54% no Brasil, 65% na África Subsaariana e
64% no Oriente Médio. Nos casos de Índia, Estados Unidos, Rússia, China e
Europa, esses índices, que se situavam entre 25% e 35% em 1980, estavam entre
35% e 55% em 2018. No período 1980-2018, a parte do crescimento mundial total
da renda captada pelo 1% mais rico do planeta foi de 27%, em comparação a 12%
para os 50% mais pobres.
Logo após a publicação de seu livro mais famoso, O capital
no século XXI , Piketty foi acusado de defender uma volta à aventura soviética.
Embora o título do livro fosse realmente uma referência à obra de Karl Marx, o
francês em momento algum defendia uma revolução. Quem escolheu esse ponto para
criticar a obra errou o alvo. Piketty propunha uma visão reformista. No novo
livro, ele parece querer dar um passo mais ousado. Propõe a construção de um
novo horizonte igualitário de proporções universais, um tipo de “socialismo
participativo” para o século XXI, em uma nova ideologia da igualdade sob formas
alternativas de organização da sociedade, da propriedade, da educação ou dos
impostos. Entre as medidas pregadas como corretivas por Piketty estão a
instauração de um regime de propriedade social e temporário, baseado na
partilha de direito de voto e de poder com os assalariados nas empresas —
inspirado no que já ocorre na Alemanha — , de um sistema de imposto progressivo
sobre a renda e a propriedade ou de uma dotação universal em capital. Uma de
suas apostas é um imposto anual progressivo sobre o patrimônio que poderia
alcançar até 90% para os bilionários. “Não se vai esperar que Mark Zuckerberg
ou Jeff Bezos cheguem aos 90 anos e transfiram suas fortunas para que comecem a
pagar impostos”, justifica. Essa taxação serviria para dar uma soma em dinheiro
a cada pessoa que completasse 25 anos. Nos países ricos, a quantia poderia
chegar a US$ 130 mil.
“AS TESES DE PIKETTY
ESTÃO LONGE DE SER UMA UNANIMIDADE ENTRE OS ECONOMISTAS MAIS RESPEITADOS DO
MUNDO. MAS É INEGÁVEL SEU MÉRITO COMO UM DOS QUE MAIS INCENTIVAM O DEBATE SOBRE
DESIGUALDADE SOCIAL”
Uma parcela considerável dos economistas aceita que a
desigualdade pode ter efeitos positivos. Serve de estímulo para que estudantes
se esforcem mais e empreendedores trabalhem com mais afinco para atingir
determinado objetivo. Essa é a desigualdade que faz as empresas e os países
avançarem. Mas existe também uma desigualdade tóxica, que acaba com a ideia da
meritocracia. Nesses casos, a posição social dos pais é determinante no futuro
dos filhos. Quem nasce numa casa abastada, estuda em escolas particulares, com
aulas particulares, tem acesso a medicina privada, fonoaudiólogos e psicólogos
tem uma possibilidade altíssima de ter um bom emprego na vida adulta,
independentemente do talento que tenha. Já quem nasce num lar pobre só consegue
um lugar entre os trabalhos mais bem remunerados se for extremamente
inteligente — e tiver muita sorte. Diminuir a impressão de que existe um jogo
de cartas marcadas tem sido uma das missões de políticos de diferentes cores —
o que pode ser medido pela quantidade de vezes que a expressão “igualdade de
oportunidades” tem aparecido em discursos. Como já disse Piketty, goste-se ou
não do diagnóstico que ele faz da situação e da receita defendida como solução,
o importante é participar desse debate.
Texto e imagem reproduzidos do site: epoca.globo.com
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