Publicado originalmente no BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 14 de
agosto de 2021
Lamounier: "Somos um país rigorosamente desprovido de
elites".
Artigo do professor Bolívar Lamounier para o Estadão:
"Reflexões sobre um país invertebrado":
Só os muito obtusos têm o direito de subestimar a gravidade
dos males que a imposição de uma ditadura traria ao Brasil. A esses é também
dado o direito de ignorar que Jair Bolsonaro – coadjuvado por um número
decrescente, mas ainda expressivo, de bolsonaristas fanáticos – não pensa
noutra coisa.
Os demais podem ser classificados em dois grupos: os
democratas e um grupo amorfo, formado por bolsonaristas a caminho da desilusão
e indiferentes. Os democratas sabem perfeitamente o que têm de fazer: protestar
contra os desatinos diários do inquilino do Planalto e trabalhar ativamente
pela formação de uma candidatura capaz de se opor aos extremos populistas na
eleição de 2022.
Isto posto, penso que a sustentação do regime democrático
está na dependência de dois fatores. O primeiro é, obviamente, o centro. A
polarização eleitoral de 2018, cujos efeitos foram agravados pela pandemia,
esmagou os partidos, já de si débeis, que tentavam ocupar esse espaço. Em médio
prazo, é imperativo reconstituir tais partidos, mas o momento que vivemos é uma
emergência. O que ela exige é uma solução rápida e eficaz: escolher o candidato
certo para a eleição, tendo em mente que já estamos na contagem regressiva.
Reconstituir todo o nosso esfarelado sistema de partidos não é algo que se
possa efetivar da noite para o dia.
Dentro desse quadro, o segundo fator que me propus discutir
adquire importância singular, pois diz respeito ao longo prazo, mas precisa ser
iniciado o quanto antes. Refiro-me à própria coluna vertebral do sistema
político.
Até os anos 50 do século passado, ou seja, no imediato
após-guerra, demos por assentado que uma elite relativamente exígua e o texto
constitucional adotado em 1946 cumpririam a função básica de vertebrar o regime
democrático. Nosso principal erro foi subestimar a corrosão do sistema político
pelo antagonismo getulismo x antigetulismo, das discordâncias referentes à
estratégia de crescimento econômico e pelo onipresente veneno da guerra fria.
No momento atual, urge-nos encarar a realidade com mais
sobriedade e lucidez. Não só os problemas que temos pela frente se agigantaram,
mas as ameaças à democracia são proferidas, às vezes de forma explícita e sem
nenhum pudor, por titulares de funções públicas elevadas. Entre os antídotos a
considerar, peço licença para me concentrar na questão da elite. Uma elite
exígua e limitada à esfera política, como a que povoava nossas mentes nos anos
50 do século passado, hoje, manifestamente, não é possível nem desejável. Somos
agora um país muito maior e com carências dantescamente mais graves. Digamos,
abreviadamente, que a governabilidade se tornou um problema agudo, mesmo na
hipótese de voltarmos brevemente a tempos normais. O contraponto à nossa antiga
imagem da elite é a mistificação populista do “povo”, uma entidade amorfa,
indefinível, como convém a esse gênero de política. O líder populista
tipicamente apela à totalidade do “povo” para se legitimar e convoca seus
militantes fanáticos para ameaçar as instituições democráticas.
A verdade é que democracia alguma jamais funcionou a contento quando se deixou arrastar para um desses extremos. Precisamos de mais convicção democrática e mais envolvimento e participação, mas a convocação que nos cumpre fazer é aos possuidores de recursos (resource owners), vale dizer, a todos os que detenham renda, riqueza, escolaridade, capacidade de argumentação e até, simplesmente, tempo, disponibilidade de tempo, recurso sem o qual um cidadão pouco pode fazer pela vida pública de seu país. Em números, os resource owners distam muito do “povo” dos populistas, mas são muitas vezes mais numerosos que a elite que tínhamos em mente no século passado.
O que venho de expor não é uma alternativa a qualquer das
questões de substância que têm sido consideradas em nosso debate público. Não é
um substituto para a reforma política. Não dispensa alterações constitucionais
que impeçam os criminosos de colarinho branco de se refugiarem atrás do
“trânsito em julgado”. É, isso sim, um apelo a um sujeito real, de carne e
osso, que poderia estar efetivamente presente nas trincheiras de defesa da
democracia, mas não encontra forma de o fazer, dadas a irrelevância e o caráter
oligárquico de nossos partidos políticos.
O problema, como o vejo, é que passamos décadas e décadas
vituperando “as elites”, quando, na verdade, somos um país rigorosamente
desprovido de elites, ou de qualquer travejamento que confira substância e
sustentação às instituições formais. Por difusa e dispersa que seja, a
comunidade dos possuidores de recursos pode vir a ser o anteparo sem o qual
jamais teremos uma reforma política séria. Esta constatação tem tudo que ver
com nosso futuro econômico e social. Não vejo possibilidade de o Brasil retomar
o crescimento econômico em bases sustentáveis sem uma reforma política
abrangente e profunda. E não me parece plausível que o Congresso Nacional
venha, sponte sua, a realizar tal reforma.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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