Compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, em 29 de setembro
de 2021
Bolsonaro mil dias (perdidos)
O Bolsonaro que está na Presidência só é o mesmo da campanha
(e de antes) em truculência e patrimonialismo. Paulo Cruz para a Gazeta do
Povo:
“[…] a constituição inteira da realidade do homem e da
sociedade é apagada pelo sonho, pela fantasia de uma segunda realidade, onde
coisas como ‘necessidades históricas’ podem ser encontradas. Tal segunda
realidade, é claro, não existe. Ao contrário, é sempre uma questão de o homem
envolvido ser um tipo degenerado. Quem quer que seja um tipo degenerado tem
necessidades históricas.” (Eric Voegelin, Hitler e os alemães)
Num grupo privado e aposentado de Facebook, que reunia
muitas figuras conhecidas da natimorta nova direita brasileira – dentre estes,
muitos ex-amigos inacreditavelmente cooptados pelo governo de turno –, leio: “O
problema é que não consigo mais me misturar com minions, e justamente o que
SEMPRE FIZ, e me cobram por não ter feito, é o que tomo cuidado para não fazer
agora: me declarar bolsonarista roxo”. Ou seja, mesmo numa sentença meio
confusa, dá para entender que um sujeito que, atualmente, é um dos mais empedernidos
bolsonaristas, em meados de 2017 esforçava-se para não se “misturar com
minions”, e o receio de que os movimentos conservador e liberal que
modestamente surgiam fossem confundidos com o movimento bolsonarista, era real
muito antes das eleições de 2018. O que terá acontecido para que esse e mais um
número considerável de pessoas que eram muito críticos, como eu, àquilo que se
configuraria como bolsonarismo, que tinham sido atacadas por hostes militantes
olavistas e bolsonaristas, de repente, diante do que se apresentava, bandeassem
para um governismo tácito ou declarado? Deus é quem sabe.
O fato é que, após mil dias de “governo” Bolsonaro e de
praticamente todas as promessas de campanha jogadas na lata do lixo, só apoiam
ainda tamanha excrescência aqueles que lucram com ela ou os que estão cegos por
ela, vivendo na segunda realidade dos grupos de WhatsApp. A lista de
descaminhos é grande. Eis alguns itens:
Retirou o Coaf do Ministério da Justiça para proteger os
filhos; sancionou o juiz de garantias (emenda de Marcelo Freixo); sancionou a
limitação de delação premiada; sancionou a Lei de Abuso de Autoridade; nomeou
Augusto Aras, um reconhecido petista, para a PGR; nomeou André Mendonça,
ex-assessor do Toffoli, para a AGU e, depois, para o STF; “derrubou” Sergio
Moro por ele discordar de sua interferência na Polícia Federal; ajudou a
desarticular a CPI da Lava Toga; entregou o governo ao Centrão – não para
dialogar e buscar a governabilidade, mas para se manter no poder e blindar os
filhos; tornou-se recordista no gasto com emendas parlamentares; não privatizou
a EBC; criou duas estatais em vez de privatizar; indicou Kassio Nunes Marques,
crítico da Lava Jato, para o STF; excluiu a nata do funcionalismo da reforma
administrativa que enviou ao Congresso. Há mais, muito mais; mas isso basta.
Não há qualquer ilusão: o Bolsonaro que está na Presidência
só é o mesmo da campanha (e de antes) em truculência e patrimonialismo. E
engana-se quem diz que ele não governa porque o Sistema não deixa. Primeiro
porque ele é do Sistema, o conhece há mais de 30 anos, sabe como as coisas
funcionam por lá e sabia o que era necessário fazer para fortalecer sua bancada
de apoio e lutar pelas reformas. Segundo que, no início de seu governo, tinha
todo o apoio de que precisava para tais negociações. Do ponto de vista daquilo
a que seu governo se propunha, conseguiu algumas poucas (mas importantes)
conquistas, como a reforma da Previdência (mantendo o privilégio de militares)
e a Lei da Liberdade Econômica, antes de enveredar para um sonho de democracia
direta, na qual o “povo” ficaria 24 horas por dia nas ruas, pressionando o
Congresso para que acatasse todas as pautas do governo.
E começaram as pífias manifestações governistas (ainda em
2019) e a formação de grupos militantes malucos, que investiram contra as
instituições de forma tão absurda que a única coisa que conseguiram foi iniciar
uma perseguição implacável – sobretudo do STF – contra seus líderes, resultando
em prisões e arbitrariedades tão absolutamente condenáveis quanto suas atitudes
frontalmente antidemocráticas. Dizer, por exemplo, que nas manifestações
bolsonaristas não pediam, insistentemente, o fechamento do Congresso, a
instauração do AI-5 e a destituição dos ministros do STF; que os cartazes de
“Eu autorizo” – pedindo por “intervenção federal, estado de defesa ou estado de
sítio” – não eram tacitamente aceitos e louvados pelo presidente, que se
enxerga como a representação da vontade popular, é tentar tapar o sol com a
peneira. Bolsonaro deu mostras bastante claras de que via nessa tentativa de
insurreição a oportunidade de governar sem ter de “se vender”, sem ter de
negociar, sem ceder ao toma-lá-dá-cá. Só não contava com a fragilidade de seus
esquemas familiares de peculato. Pediu truco, levou um seis.
Então veio a pandemia. E aqui poupar-te-ei, caro leitor,
pois estamos diante do curso dos acontecimentos, e o que se configura não são
somente crimes, mas a mais pura crueldade, o sadismo, a mortandade deliberada.
Basta dizer que nosso distinto presidente investiu contra a população desde o
primeiro dia das medidas de contenção de uma doença totalmente desconhecida e
sobre cujos efeitos ainda não tínhamos informações suficientes. Decidiu negar,
peremptoriamente, a mais importante virtude conservadora: a prudência. Com isso,
menosprezou a letalidade do vírus, desprezou as mortes e o receio da população,
instou que voltássemos “à normalidade” e não só incentivou como comandou uma
campanha intensa e irresponsável pelo uso da hidroxicloroquina – medicamento já
comprovadamente ineficaz contra a doença – e outras drogas do famigerado “kit
Covid”. Também, diante dos gravíssimos problemas em Manaus – com as pessoas
morrendo por falta de respiradores –, imitou pessoas com falta de ar. E o caso
recente, em investigação, que envolve a empresa de assistência médica Prevent
Senior, se comprovado, configurará um tipo de crime cuja hediondez deverá ser
julgada por tribunais internacionais.
Tudo isso em meio a crises fabricadas pelo próprio
presidente, que, recentemente, promoveu uma série de motociatas, um desfile de
tanques vergonhoso para provocar os demais poderes da República, e, no último 7
de setembro, resolveu apostar todas as fichas num possível golpe de Estado
(provocando a tal sinalização do povo), inclusive ameaçando nominalmente o
ministro Alexandre de Moraes, para, logo em seguida, voltar atrás com uma carta
redigida pelo ex-presidente Michel Temer.
O que temos, então, a comemorar, nesses mil dias de governo
Bolsonaro? Tu respondes, atento leitor.
De minha parte, quero somente evocar, novamente, uma obra
que deve ser lida por todos os que desejam verdadeiramente compreender o
momento atual, no qual uma estupidez pretensiosamente perigosa toma conta do
alto comando do país: Hitler e os alemães, de Eric Voegelin. Não, não se trata
de apelar à Lei de Godwin, mas de perceber o espírito que domina determinadas
mentes e épocas; nesse sentido, a obra não é só uma análise perfeita, mas
também tem um caráter profético. Voegelin recorre ao romancista Robert Musil
para falar do que chama de estupidez criminosa, cujos efeitos são
catastróficos. Diz ele:
“Esse é o ponto em que a estupidez – por prejudicar não apenas o estúpido, mas também outros seres humanos (nesse caso, milhões de seres humanos, que devido a ela foram levados à miséria e foram mortos) – tem de ser chamada, nessa circunstância social específica, estupidez criminosa. Ou seja, a estupidez não é criminosa em si, mas pode tornar-se criminosa pela circunstância social. Então, quem quer que, como estúpido, num lugar da sociedade em que não poderia estar, dá ordens ou tenta instruir outros, é um estúpido criminoso; e por causa disso ele se torna um criminoso, mesmo que ele próprio não entenda assim de maneira nenhuma.”
Eis o que temos diante de nossos olhos. Não concordas,
estupefato leitor? Pois bem, o tempo dirá. Por ora, só nos resta sentar e chorar
pelos mil dias perdidos.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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