terça-feira, 3 de dezembro de 2024

Treze acepções de "golpe"

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 29 de novembro de 2024

Treze acepções de "golpe"

O canto da araponga, uma batida de carros e a Proclamação da República remetem à mesma palavra. A crônica de Orlando Tosetto para a revista Crusoé:

Desde que, em 31 de agosto de 2016, após mais de oito meses de conversas e vaivéns, com relatórios dos deputados, relatórios dos senadores, abertura de processo, infindáveis discursos de defesa e votação aberta do Parlamento em sessão presidida por Ministro do STF (ministro que, aliás, hoje ministra aquilo que o país se habituou a chamar de “Justiça”), a então presidente da República sofreu impeachment, temos convivido diuturnamente com a palavra golpe.

E eis que o termo entrou na moda.

Foi golpe, teve golpe, deram um golpe, quiseram dar um golpe, querem ainda o golpe, medidas excepcionais e temporárias foram adotadas para evitar o golpe, heroicamente impediu-se o golpe — e vamos seguindo assim, golpeados o tempo todo pela palavra, usada a troco de tudo e de nada.

Tanto é assim que nem duvido mais que golpista, tal como fascista ou nazista, já seja ofensa comum em discussões de trabalho e em mesas de família pelo país afora.

É que somos um povo cordial, ou seja, guiado pelo coração; e o nosso coração às vezes se apaixona por uma palavra. Ou a transforma em mania (também chamada, hoje em dia, de “hiperfoco”).

Mas o que quer dizer essa palavra que virou mania?

Segundo ensina, em seu dicionário, o senhor Aurélio Buarque de Holanda (sobrenome aliás quase hagiográfico hoje em dia), golpe é um substantivo masculino que tem mais de uma acepção, isto é, mais de um significado.

Na verdade, ele nos dá nada mais, nada menos do que treze acepções diferentes; nem todas, é claro, nos interessam.

Uma delas, por exemplo, é o canto da araponga (do pássaro, não daquele cara da Abin que fica andando atrás de você na rua).

Outro é a batida, a trombada: colisão de trens ou de veículos, ou aquela topada com o dedão na quina da mesa.

Outro ainda é o choque inesperado, que causa algum tipo de abalo emocional (esse poderia ser o nosso, mas ainda não é).

E até um grande número de pessoas que entram ou saem de algum lugar: um golpe de gente entrando no metrô ou saindo do Pacaembu.

Entre os maus golpes estão o de ar ou de vento, que nos traz a tosse, a gripe, às vezes até a pneumonia; o financeiro, que empobrece alguns para enriquecer outros; o do baú, que é a variante matrimonial do financeiro; o de vista, que infelicita tanto a vida dos goleiros; os de malandragem, que fazem a vida dos estelionatários; e os diversos golpes e contragolpes das lutas, das brigas, das artes marciais: jab, gancho, upper-cut, ippon, etc.

Há também golpes bons: o teatral, que já teve má fama mas anda se reabilitando; o de mestre, de que temos visto vários; e o de sorte, que temos visto mais ainda – que o diga o inocentíssimo, impolutíssimo e sacrossantíssimo colosso moral que nos rege, governa, beneficiadíssimo que foi por vários golpes consecutivos dados pela pena e pelas togas da sorte.

Mas, claro, o que domina a nossa vida e a nossa imaginação é sempre o golpe na sua acepção política: o golpe de Estado, que também é chamado, entre os patrícios mais ilustrados, pelo nome francês coup d’état, ou pelo nome alemão putsch – este exclusivo para golpes dados por militares, como, por exemplo, o de 1964, ou a Proclamação da República.

(Sim: a República nasceu de um golpe de Estado, e foi também um golpe militar.

Deodoro da Fonseca era marechal de campo quando derrubou o imperador, e terminou a vida, qual Stálin ou esses cabras aí da Nicarágua, Cuba, Venezuela e adjacências, como generalíssimo. Deve, inclusive, ter inaugurado o uso dessa patente.)

Esse é o golpe que não nos dá sossego, esse é o golpe sob cujo barulho tentamos dormir, esse é o golpe que está sempre à espreita, sempre na bica de acontecer, esse é o golpe Godot: o que estamos continuamente temendo que cresça, apareça e aconteça. Esse é o golpe que tanto nos cansa.

Da nossa parte, amigo, e digo “nossa” porque sei que nessa você está comigo, o negócio é simplesmente ser contra qualquer golpe, seja ele militar, seja ele judicial, seja ele dado com a espada ou com a pena.

Tanto faz se o golpe é pra tirar um (do poder, da cadeia, da vida) ou pra pôr outro (lá em cima, sempre lá em cima).

Chega, basta.

Nossa vida já é cheia demais de solavancos (outra acepção de golpe); pleiteemos uma estrada mais lisa pras nossas vidas.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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