terça-feira, 21 de outubro de 2025

A liberdade de expressão tem lados?

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 20 de outubro de 2025

A liberdade de expressão tem lados?

A forma certa de responder a palavras de que discordamos é com outras palavras que as contradigam. A resposta às palavras de que discordamos não é agressividade física mas sim outras que as contrariem. Vicente Ferreira da Silva para o Observador:

1 Não sei se estamos na Stranger Things ou na Twilight Zone? Inclino-me mais para esta última. Mas talvez seja melhor englobar as duas e dizer Stranger Zone. Porquê? Porque devemos estar numa espécie de realidade alternativa ou num universo paralelo onde vemos a direita a fazer exactamente o mesmo que criticava à esquerda há quarenta, trinta, vinte ou dez anos: dois pesos e duas medidas – o que é dito por uns e que não vale nada para alguns, passa a valer tudo quando é dito por nossos. É a tal democracia das claques!

Não há lados na liberdade de expressão. Ou há liberdade de expressão ou não!

Quando alguém só defende as ideias de que gosta e apoia a limitação ou proibição das restantes ideias, não está a defender a liberdade de expressão, nem tampouco a democracia. Que não haja enganos!

2 O pensamento marxista (e das suas variações) é, desde a sua origem, binário e dogmático. Na ex-URSS, tudo era controlado. Principalmente, a conformidade do pensamento com os ditames doutrinários. Por exemplo, a teoria da relatividade foi atacada por entrar em conflito com o materialismo histórico; a antropologia soviética só reconhecia como legítima e verdadeira a perspectiva marxista; e na medicina defendia-se a pureza da teoria marxista-leninista nas cirurgias.

Ora, esse dogmatismo também significou que o marxismo era não evolutivo e que sujeitava tudo, incluindo a moral. Lenine expressou-o quando afirmou, no discurso proferido no III Congresso Russo da Liga dos Jovens Comunistas, que “a nossa moral está inteiramente subordinada aos interesses da luta de classes do proletariado”. Ou seja, não havia limites ou acções para a preservação e a prevalência dos interesses da luta de classes do proletariado. Em verdade, sabemos que ele se referia aos interesses do partido comunista russo.

O tempo passou e o mundo mudou. Mas as intenções permaneceram. Tendo a esquerda perdido o confronto económico e político, virou-se para a vertente cultural. Contudo, as intenções mantiveram-se. Daí que o escabroso e inqualificável populismo cultural que a esquerda alimentou durante anos, incentivando discriminações, divisões, discórdias, tenha mantido uma aura moral e se consubstanciado numa verdade inquestionável. O wokismo e a cultura do cancelamento exemplificam-no.

3 Tal como a extrema-esquerda, agora é a extrema-direita que se considera dona da moral e da verdade, defendendo posições inacreditáveis. Tudo o que diz, mesmo que seja discurso de extremismo ou de radicalismo, e até mesmo de ódio, é aceitável e aplaudido. Assim, passámos do exclusivo dos santos e da santidade à esquerda vs pecadores e da profanidade à direita para o seu inverso. Este é o tipo de postura binária que destrói a democracia.

Há uns anos, qualquer pessoa da direita, incluindo os que eram convidados para expor as suas ideias em debates ou em eventos da esquerda, não tinham hipótese sequer de falar, pois assim que apareciam no palco, começava uma barulheira tal que não permitia que falassem. Hoje, a direita, para além de fazer a mesma coisa, também tem uma política de cancelamento. Para os mais cépticos, eis uma lista com alguns dos livros banidos ou cancelados nos EUA. Pela esquerda e pela direita:

To Kill a Mockingbird, Harper Lee

Little House on the Prairie, Laura Ingalls Wilder

Adventures of Huckleberry Finn, Mark Twain

Of Mice and Men, John Steinbeck

And to Think That I Saw It on Mulberry Street, Dr. Seuss

On Western Terrorism, Noam Chomsky

Gender Queer, Maia Kobabe

All Boys Aren’t Blue, George M. Johnson

The Bluest Eye, Toni Morrison

Nineteen Minutes, Jodi Picoult

Lawn Boy, Jonathan Evison

A única diferença são os alvos. A direita concentra-se no banir livros que abordem sexo, LGBTQ+, “conceitos divisivos”, obscenidades, etc., e a esquerda focaliza-se no racismo, islamofobia, culturalismo e afins. Mas convém não esquecer que autores clássicos como Aristóteles, Ovídio, Shakespeare, entre outros, também são alvo de cancelamento. Resumindo, parece-me inquestionável que o cancelamento é transversal. Porquê? Simples. A imposição de um entendimento de moral.

4 As ideias combatem-se com outras ideias. Nunca pela supressão! A forma certa de responder a palavras com que discordamos é com outras palavras que as contradigam. A resposta às palavras com que discordamos não é agressividade física, mas sim outras palavras que as contrariem.

Recentemente, alguns activistas foram notícia por rasgar exemplares do livro do Henrique Cymerman. Inevitavelmente, encontramos, à direita ou à esquerda, este tipo de puristas incapazes de ser tolerantes, nem de respeitar a diversidade e a pluralidade de opinião.

Dizem-se arautos do bem e da liberdade, mas agem como se fizessem parte do Ministério da Propaganda de Goebbels ou do Glavlit soviético. Se preferirem, estes activistas tinham futuro na Direção-Geral dos Serviços de Censura, e até na PIDE, de Salazar – a escolha fica ao critério de cada leitor.

Não se defende a liberdade, nem as ideias contrárias às nossas, com censura ou proibição, queima ou rasgar de livros:

*As ideias são confrontadas através do diálogo, recorrendo a argumentos fundamentados em factos, lógica e evidências, visando identificar fragilidades em concepções problemáticas e propor alternativas mais robustas e consistentes.

*Em vez de se censurar, proibir ou cancelar, o que deve ser feito é expor as ideias à crítica aberta e oferecer melhores alternativas, preservando a liberdade de expressão.

*O objectivo é fazer com que as pessoas pensem criticamente.

5 Estou farto deste tipo de imbecis, quer da esquerda, quer da direita, pseudo-defensores da liberdade que não passam de extremistas sem capacidade para distinguir conceitos. Infelizmente, cada vez mais pululam por aí.

Como firme defensor do pluralismo, para além de aceitar e respeitar a diversidade de pensamento, nunca acreditei na proibição de qualquer ideologia (mesmo as que defendem coisas inqualificáveis), por muito má que possa ser. A principal diferença entre o nazismo e o comunismo era apenas um grau (ainda bem que já não existe a Alemanha nazi nem a Rússia soviética). Por isso, por mais que considere alguns livros repugnantes, não me arrependo de os ter lido. Penso, por exemplo, que devia ser obrigatório ler, entre outros, o Manifest der Kommunistischen Partei, o Mein Kampf e o The Constitution of Liberty. Para depois perceber os contextos que cada um origina. É a ler ideias contrárias que se aprendem as diferenças.

Tolerância implica permitir aquilo com que não se concorda e não apenas aquilo que defendemos ou que preferimos. Pessoalmente, não gosto do termo tolerância por pressupor condescendência. Prefiro, pura e simplesmente, aceitar que os outros sejam diferentes de mim e que possam pensar de outra maneira. Tal não me impede que forme uma opinião critica, assim como os outros formarão a meu respeito. Mas uma opinião critica não é um juízo de valor.

Cada vez mais aprecio a sabedoria de Bertrand Russell…“A essência da perspectiva liberal na esfera intelectual é a crença de que a discussão imparcial é útil e que os homens devem ser livres de questionar o que quer que seja se puderem fundamentar o seu questionamento em argumentos sólidos. A visão oposta, defendida por aqueles que não podem ser chamados de liberais, é que a verdade já é conhecida e que questioná-la é necessariamente subversivo.”

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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