Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 22 de outubro de 2025
Putin, Gaza, Trump e as lentes com que lemos o mundo.
Compreender é sempre um ato de visão. Cada época constrói as suas lentes. As nossas, temo, estão partidas. Basta ligar a televisão: dezenas de especialistas a “verem” coisas opostas no mesmo cenário. José António Rodrigues do Carmo para o Observador:
Há ideias que funcionam como instrumentos ópticos do espírito. Usamo-las e, através delas, vemos o mundo.
Claude Lévi-Strauss, o antropólogo que descobriu que o selvagem e o civilizado têm a mesma estrutura mental, dizia que, para interpretar o mundo, uma época, uma nação ou uma guerra, é preciso usar uns óculos especiais. Não falava de vidro e armação, mas de uma metáfora: a teoria como instrumento de visão e prótese da mente. O homem sem teoria sobre a realidade é como o míope que confunde vultos com demónios; reage, mas não compreende.
Estes óculos, dizia Lévi-Strauss, são indispensáveis, mas distorcem. Toda a lente é também um véu. E o drama contemporâneo consiste talvez nisto: já não sabemos que lentes usar. O excesso de imagens, o rumor incessante das redes, a saturação de notícias e de interpretações, tudo nos ofusca e baralha. O homem actual não é cego: é deslumbrado. Vive numa feira de ópticas: tem muitas lentes e não sabe qual usar
A ideia de ler o presente através de uma lente não é nova. Em meados do século XIX, Alexis de Tocqueville via a história como um rio de democracia: lento, majestoso, inevitável. Karl Marx, mais impaciente, via o mesmo panorama através de um outro cristal: um rio de sangue proletário, destinado a purificar o mundo. A revolução proletária, inelutável, que dissolveria as classes e instauraria a justiça.
Durante dois séculos, sucessivas gerações olharam e “compreenderam” o mundo através dessas lentes. Com elas fizeram guerras, revoluções, tratados e telenovelas políticas. Estarão gastas? Ter-se-ão partido sem que déssemos por isso?
No fim do séc. XX, Samuel Huntington apresentou um novo par de óculos: o mundo como um mosaico de civilizações em atrito, a ranger nas fronteiras das suas placas tectónicas. Foi, talvez, o último a tentar um olhar panorâmico. Parecia um geólogo com alma de profeta. Mas as suas lentes foram rejeitadas por muitos. Zapatero, Erdogan, Jorge Sampaio, etc. Depois dele, regressámos à fragmentação, à miopia, ao microscópio das redes sociais. Hoje, temos numerosos míopes e falar como se tivessem telescópios.
E nos laboratórios académicos da actualidade, voltou uma moda vintage: os óculos de Carl Schmitt, fabricados nos anos trinta, com ares de militar e cheiro a pólvora. A sua biografia, de sombra espessa, não apaga a lucidez desconfortável das suas ideias. Schmitt dizia que a política não é o debate entre direita e esquerda, mas o confronto entre amigo e inimigo. As colectividades só se unificam quando se reconhecem contra alguém. Não há sociedade sem ódio partilhado, nem povo sem inimigo. O cimento da política não é o amor, mas a hostilidade organizada.
A fórmula é brutal, mas tem poder explicativo. Mourinho e Pinto da Costa compreenderam isto sem nunca lerem Schmitt: nenhuma equipa prospera sem adversário odiado. Os extremos, na política, vivem da hostilidade a tudo o que detestam.
O mesmo sucede às nações. Portugal nasceu contra o mouro, contra o castelhano e, às vezes, contra si próprio. Até a ideia de “palestiniano”, inexistente há meio século, floresceu da oposição a Israel. Nada une mais do que o outro
Olhemos Putin. O seu programa não é apenas a reciclagem de uma velha doutrina geopolítica, é sobretudo um reflexo imperial: reforçar o poder, unificar as hostes e definir o inimigo. Putin é schmittiano por instinto e desagua tranquilamente nas lentes de Huntington: o inimigo é o Ocidente encarnado, na circunstância presente, pela Ucrânia. Essa designação anestesia o povo. Produz coesão, obediência, fé.
Xi Jinping repete, em mandarim, o mesmo guião: o Ocidente como ameaça, a dissidência como traição. Schmitt sorri do túmulo: tinha razão.
Mesmo Trump, que dificilmente terá lido uma linha de filosofia política, age como se tivesse nascido schmittiano. O seu programa é uma lista telefónica de inimigos nomeados. O inimigo é o eixo do seu pensamento. E resulta.
Na Europa, velha e tonta senhora, à deriva entre o enfarte woke, a amnésia liberal, e as memórias de antigos faustos, permanece a ideia da democracia liberal, que Schmitt julgava arcaica, porque hesitante. O parlamentarismo, dizia ele, é uma conversa prolongada enquanto o mundo arde. A última performance da orquestra do Titanic. A sua crítica tinha uma lucidez sinistra: num mundo em convulsão, o poder que discute é devorado pelo poder que decide e age.
Se Schmitt tem razão, ou parte dela, a velha dicotomia direita e esquerda é já arqueologia política. A verdadeira escolha é entre duas formas de organizar a energia humana: a que precisa de um inimigo e a que procura um projecto comum. A primeira é eficiente; a segunda é civilizada. Por isso, talvez, o liberalismo pareça frágil: não sabe odiar com método e não identifica prontamente o inimigo
É verdade que a história confrontou Schmitt com uma refutação tardia. Foram as democracias liberais (os Estados Unidos, a Europa Ocidental) que, com o velho parlamentarismo e o tédio das assembleias, venceram os impérios totalitários. Foi um triunfo lento, inseguro e talvez efémero, mas um triunfo. O liberalismo, que parecia condenado, acabou por derrotar o seu inimigo não porque o designou, mas porque o entendeu. Porque usou as lentes adequadas.
Os liberais, ingénuos crónicos, acreditaram durante demasiado tempo que se podia negociar com monstros, até compreenderem que era preciso lutar. Hoje repetem o mesmo erro com Putin, com o islamismo político e talvez com o Celeste Império. Schmitt pode ter-se enganado no fim da história, mas raramente se engana no princípio.
Voltemos, então, a Lévi-Strauss. É preciso pois usar óculos, mas saber quais. Precisamos de lentes mais subtis, mais complexas, que nos permitam ver o outro sem o transformar numa caricatura, como alguém que compreende o poder de modo diverso: não como relação, mas como domínio.
Ler Schmitt é como ler Maquiavel: perigoso, mas indispensável. Maquiavel ensinou os príncipes a governar sem culpa e os súbditos a desconfiar sem esperança. Rousseau viu nele, paradoxalmente, um democrata que advertia o povo contra os príncipes. Talvez Schmitt mereça igual paradoxo: o maior inimigo da sua própria teoria.
No fim, compreender é sempre um acto de visão. E cada época constrói as suas lentes. As nossas, temo, estão partidas. Basta ligar a televisão: dezenas de especialistas a “verem” coisas opostas no mesmo cenário.
O problema do nosso tempo não é a falta de visão: é o excesso de olhares. Cada um construiu o seu universo a partir das suas lentes e chama-lhe verdade. E a verdade é simples, quase vulgar: quem não vê com as lentes certas, está perdido, e arrasta o mundo consigo.
Texto e imagem do blog: otambosi blogspot com
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