Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Foto Nelson Almeida/AFP
Publicado originalmente no site Brasil EL País, em 12 de julho de 2018
O Brasil onde se zomba da ética se coloca às portas da
ditadura
O emblemático caso de Lula está revelando que o conceito de
ética está desmoronando a ponto de não se saber mais onde começa a verdade e a
mentira
Por Juan Arias
O caso Lula e os últimos acontecimentos em torno da
tentativa de libertá-lo da prisão a qualquer preço estão revelando algo mais
profundo e grave: que, no Brasil, o espúrio conúbio entre política e justiça
está jogando por terra o sentido sagrado da ética, que em suas origens supõe o
reconhecimento entre “o bem e o mal”, como já advertia o filósofo Aristóteles.
E quando um povo confunde os limites entre o bem comum e o pessoal, quando
zomba da ética, coloca-se às portas da ditadura.
Se instituições como a política e a Justiça são concebidas
por seus responsáveis como uma confraria de interesses pessoais, à custa das
pessoas, é inevitável que surja a tentação de soluções autoritárias para impor
e decidir o que é bom e o que é mau, à margem do que a sociedade possa pensar.
E esse é um perigo real hoje no Brasil, onde o emblemático
caso de Lula, com tudo o que arrasta de paixões e interesses e que pode
condicionar o presente e o futuro do país, está revelando que o conceito de
ética está desmoronando a ponto de não se saber mais onde começa a verdade e a
mentira, a liberdade e a tirania.
Quando uma sociedade percebe que os principais responsáveis
nacionais por lutar pelo princípio da ética – vista como o sal que impede que a
democracia apodreça – são os primeiros a pisoteá-la e ajoelhá-la perante seus
interesses, não há nada de estranho que ela acabe envenenada, dividida,
incrédula e tentada a tomar a justiça nas suas próprias mãos. Nesse ponto, a
explosão de violência é inevitável.
Quando magistrados, juízes e políticos (preciso dar nomes?)
usam seu poder a favor ou contra os que consideram ser “deles”, em detrimento
do princípio de que ela deve ser igual para todos; quando os que nomeiam os
cargos consideram normal que os nomeados sejam gratos a esses padrinhos ou ao
seu partido, mesmo que à custa de usar dois pesos e duas medidas; quando
observamos esse conluio político judicial à custa da sociedade e até da
Constituição, não é de estranhar que as pessoas nas ruas vejam isso como um
grotesco espetáculo que não corresponde ao peso e à importância de uma
sociedade como a brasileira.
Que Lula seja julgado como qualquer outro cidadão, nem com
maior nem com menor rigor, já que a lei é igual para todos. Mas que a sociedade
sinta de forma palpável que esse rigor da lei serve também com os outros
personagens da política. Do contrário, não é de estranhar que acabe convencida
de que existem réus de estimação e réus para serem perseguidos.
E quando uma sociedade se sente traída e burlada, não é
difícil que caia na tentação de jogar a ética na sarjeta para fazer justiça com
as próprias mãos. Pudemos ver isso nos últimos dias, depois da loucura judicial
da ordem de domingo do juiz Rogério Favreto de tirar Lula da prisão, e tudo o
que isso desencadeou no mundo político e judicial. Um episódio que serve para
pôr sobre a mesa a irritação nacional contra as diversas instituições. O eco
que isso produziu entre cidadãos de ambos os lados do espectro político foi
significativo e aterrador. Por parte da esquerda, os tuítes violentos lançados
à sombra do anonimato das redes, como os que diziam: “Eu queria libertar Lula
com as minhas mãos, e com as mesmas matar Moro”, ou “Gente, é preciso mandar
matar o Moro”. E pela direita, a divulgação do celular do juiz Favreto, que
também culminaram em ameaças de morte a ele e à sua família, e até o tuíte do
general Paulo Chagas, que, com a cara descoberta, incita à violência contra o
juiz que mandou soltar a Lula: “Gauchada!!! O nome dele é Rogerio Favreto. É um
desembargador petralha, está de plantão no TRF.4. Será fácil encontrá-lo para
manifestar-lhe, com a veemência cabível, a nossa opinião sobre ele e a sua
irresponsabilidade. Ele é mais um apaixonado pelo ladrão maior. Conversem com
ele”.
Alguém poderá estranhar que a sociedade se sinta em guerra?
Dividida em lados, como quem a governa, quando vê que aqueles em quem deveria
confiar para que a deusa da justiça não seja estuprada a colocam aos pés de
seus piores interesses?
Até nas guerras, nos campos de batalha, existem entre
inimigos certas regras e pausas em que os soldados enfrentados param para
conversar e até se confraternizar. Na guerra do Brasil, não parece haver nem
momentos de pausa para refletir. Existirá alguém com autoridade e moralidade
capaz de erguer a bandeira branca da paz, ou os políticos continuarão
aproveitando o descontrole que criaram para continuar pescando nas águas
revoltas?
Quando na Espanha, há mais de 40 anos, faleceu o ditador
militar Franco, o país, ferido com mais de um milhão de mortos vítimas da
guerra civil, estava partido em dois. O então futuro rei Juan Carlos, perante o
cadáver do ditador, prometeu: “Serei o rei de todos os espanhóis”. Ali começou
a difícil e ainda inacabada reconciliação nacional.
Quando em um país perde-se a medida para distinguir o bem do
mal, onde a Justiça pode ter muitas caras e a ética aparece doente e desprezada,
a democracia corre perigo de morte e abrem-se as portas dos fantasmas
autoritários.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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