terça-feira, 23 de outubro de 2018

O futuro político do Brasil


Publicado originalmente no site Brasil El País, em 19 de outubro de 2018

O futuro político do Brasil

Por Fernando Henrique Cardoso *

Bolsonaro representa a ânsia de ordem ante o medo do desconhecido. Não se trata da volta ao fascismo: a história, neste caso, não se repete. Trata-se de outras formas de pensamento e ação não democráticas.

O resultado do primeiro turno das eleições mostra o país varrido por um tsunami. Políticos e partido tradicionais ruíram nas urnas. A percepção imediata mostra que o eleitor votou motivado pelo medo do crime organizado que aumentou, do futuro da economia, que custa a sair da recessão provocada pelo governo Rousseff, do desemprego que estagnou ao redor de 13%. Também votou pela indignação diante da corrupção, desvendada principalmente pela Operação Lava Jato, que expôs as bases podres em que assentavam o governo e os partidos. Os “donos do poder” — ou assim supostos serem— foram o objeto imediato da indignação.

Com isso, um obscuro parlamentar, o capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro, apoiado por um partido quase inexistente, o PSL, que foi autor de projetos em defesa de sua categoria profissional e sempre votou contra a quebra de monopólios estatais e contra as leis de responsabilidade fiscal, aparece como vitorioso. Tornou-se símbolo do que as esquerdas chamam de “neoliberalismo”, agora com forte viés autoritário. Seu lema de campanha foi a defesa da ordem (com a lei em segundo plano) e a luta contra a corrupção. Derrotou os candidatos “centristas” (em geral pertencentes a partidos que vão do centro esquerda à centro direita), e também superou o candidato “de esquerda”, quer dizer do PT, partido de Lula, sem falar nos de extrema esquerda, minúsculos.

Com Lula preso (acusado e julgado em duas instâncias por corrupção, e não por “perseguição política”) Fernando Haddad, apareceu como seu ersatz. Foi derrotado nas várias regiões do Brasil (com exceção do Nordeste, onde também perdeu em várias capitais), nas várias camadas de renda (a exceção dos que ganham dois salários mínimos ou menos) e nas diversas categorias de formação escolar, exceto entre os menos educados, sendo que de forma esmagadora nas de portadores de diplomas de curso superior. Só quando se olha os dados por gênero há uma pequena diferença (menor de 5%) em favor de Haddad: as mulheres votaram nele mais do que os homens.

Haddad e Bolsonaro passaram ao segundo turno. As sondagens iniciais mostram que as diferenças aumentaram em favor de Bolsonaro, que leva 16 pontos de vantagem, diferença que muito dificilmente será reduzida nos poucos dias que nos separam da data do segundo turno. Ainda assim, o PT e alguns de seus aliados apelam aos líderes e segmentos democráticos para formarem uma espécie de front popular (como nos velhos tempos...). Afirmam que não governarão hegemonicamente, controlando os que forem “cooptados”, pois aceitarão a diversidade democrática. Quem crê nisso? O que não desobriga os democratas de se oporem a Bolsonaro, desde já, e especialmente no futuro. Se ganhar e se desviar da regra constitucional, dos valores da Democracia e da luta por maior igualdade terá de encontrar um muro de oposicionistas dificultando que avance.

Por trás do tsunami e das forças que o movem existem causas mais profundas (neste momento há um ódio irracional ao PT pelo que fez e a tudo que não seja “ordem”). As eleições mostraram o que se imaginava: a sociedade contemporânea, a da quarta revolução produtiva, é diferente da que se constituiu no capitalismo financeiro-industrial. Parece ser mais tecnológico-financeira, está fragmentando as velhas classes e dissolvendo seus cimentos de coesão, tornando vazias as ideologias que lhes correspondiam. Os partidos, as crenças políticas, os sindicatos, em suma, a institucionalidade política do passado, se tornou pequena para fazer face aos desafios que a Internet simboliza. A comunicação direta, mesmo momentânea e fragmentária, as news, mesmo que fakes, se sobrepõem ao bom senso, à Razão que, bem ou mal, a “mídia tradicional” (incluindo nela as rádios e a TV) se não espelhava, rendia-lhe contas. Bolsonaro é uma folha seca impulsionada pela ventania de todas estas transformações. Simboliza o anseio de ordem diante do medo do desconhecido.

A comunicação direta, mesmo momentânea e fragmentária, as news, mesmo que fakes, se sobrepõem ao bom senso

De imediato, o que se faça alterará pouco a tendência de voto. No futuro, há muito a construir. Sem que entendamos o que está por trás das “ondas” predominantes e sem que partidos e lideranças derrotados façam autocrítica e se disponham a encarar e a lutar nas novas circunstâncias pelos valores essenciais de liberdade, democracia e maior igualdade, veremos a “barbárie”. Não se trata da volta ao fascismo: a história, no caso, não se repete. Trata-se de outras formas de pensamento e ação não democráticas. Não vivemos mais na época da Guerra Fria. Não se trata da volta do autoritarismo militar com a bandeira do anticomunismo. O que ocorre hoje não foi planejado pelas Forças Armadas, embora, paradoxalmente, elas aumentarão a voz pela decisão das urnas. Espero, ainda, que também sirvam de barreira de contenção a explosões de personalismo autoritário ou de “justiça pelas próprias mãos” por parte de grupos exaltados.

A batalha a dar-se é a de reconstituição da institucionalidade democrática em sociedades interconectadas e fragmentadas. Feita a autocrítica (os partidos se lambuzaram na corrupção e os poderosos da economia não entenderam que a desigualdade pode levar ao desespero) devemos continuar a luta pelo futuro do Brasil e do povo, sem sermos massa de manobra em benefício deste ou daquele líder ou partido. Quem já lutou contra o autoritarismo sabe como é difícil, mas sabe também que a luta é possível e necessária. Para tal, quem tem o passado como testemunha de sua sinceridade não precisa da avaliação moral de quem, também de boa fé, pensa de outra maneira.

 *Fernando Henrique Cardoso é ex-presidente do Brasil.

Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com

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