Publicado na edição impressa de VEJA e no Blog Fatos, em 08/12/2018
A mídia diante do público
Por J.R. Guzzo
É fácil saber o que aconteceria com uma empresa de ônibus
que vende nos seus guichês da rodoviária de São Paulo uma passagem para Belo
Horizonte, por exemplo, e leva o passageiro para Piracicaba. Vive fazendo isso,
aliás, pois a sua grande dificuldade é anunciar no letreiro a cidade para onde
o ônibus realmente está indo. O que aconteceria é o seguinte: os passageiros,
um dia, não iriam mais viajar com essa companhia para lugar nenhum. Chega,
diriam eles — assim não dá mais. Da mesma forma, se uma pessoa costuma lhe
dizer coisas que nunca acontecem, ou simplesmente vive contando mentiras, o
mais provável é que você deixe de prestar atenção no que ela diz. Num processo
na Justiça, igualmente, uma alegação falsa feita por uma das partes pode lhe
causar sérios problemas: todo o resto da sua versão passa a correr o risco de
ficar sob suspeita. Para sorte de muita gente, porém, nem tudo funciona assim.
A memória dos seus clientes é mais tolerante, ou mais fugaz — e, portanto, mais
disposta a esquecer que lhes disseram uma coisa que não aconteceu, ou disseram
uma coisa e aconteceu outra, ou, ainda, que aconteceu justamente o contrário do
que lhes foi dito que iria acontecer. Faz parte dessa gente de sorte, hoje em
dia, a mídia brasileira.
Mas será mesmo sorte — ou, ao contrário, é um problema
cinco-estrelas que ninguém está vendo direito? Os leitores, ouvintes e
telespectadores podem estar em relativo silêncio, mas há sinais de que a
tolerância do público a pagar passagens para uma cidade e ser depositado em
outra está deixando de ser uma proteção garantida para a imprensa. Ninguém
reclama em praça pública — mas o consumidor de informação nunca reclama em
praça pública. Um dia ele simplesmente vai embora, sem dizer até logo, e não
volta mais. Quando os proprietários de órgãos de comunicação, e os jornalistas
que trabalham neles, percebem o que aconteceu, já é tarde. A menos que tenham o
suporte de uma fortaleza financeira em seu conjunto de negócios, podem
encomendar o caixão — e os cemitérios brasileiros de jornais, revistas, rádios,
televisões e, ultimamente, páginas eletrônicas que se imaginavam a última
palavra em matéria de jornalismo moderno estão cada vez mais lotados. A
diminuição do público interessado em acompanhar o que a mídia lhe diz não
começou agora, é claro. Há dez ou quinze anos a migração passou a ganhar volume
— e não parou mais, por motivos que já foram explicados em milhões de palavras,
a maioria delas, aliás, lida por bem pouca gente. Mas, pelo menos no caso do
Brasil, provavelmente não tinha havido até esta última campanha eleitoral uma
oportunidade tão clara de medir o tamanho da distância, a cada dia maior, que
separa hoje o que a imprensa imprime ou põe no ar daquilo que existe nos
corações, mentes e sentimentos da audiência. É um abismo. A mídia diz uma
coisa. O público acha o contrário. A mídia anuncia que vão acontecer os fatos
A, B e C. Não acontece nenhum dos três. A mídia quer que as pessoas façam isso
ou aquilo. As pessoas fazem exatamente o oposto.
Para que ficar tentando esconder a realidade? O que acaba de
acontecer na eleição, muito simplesmente, foi o maior fiasco que os meios de
comunicação brasileiros já viveram em sua história recente. É melhor assinar
logo o boletim de ocorrência, admitir que alguma coisa deu horrivelmente errado
e pensar, talvez, se não seria o caso de averiguar quais falhas foram
cometidas. Por que a mídia ignorou a lista de desejos, claríssima, que a
maioria da população estava apresentando aos candidatos? Por que não tentou, em
nenhum momento, entender por que um número cada vez maior de eleitores se
inclinava a votar em Jair Bolsonaro? Durante meses seguidos, os comunicadores
brasileiros tentaram provar no noticiário que coisas trágicas iriam acontecer
para todos se Bolsonaro continuasse indo adiante — mas nunca pensaram na
possibilidade de que milhões de brasileiros estivessem achando que essas coisas
trágicas, justamente essas, eram as que consideravam as mais certas para o
país. A mídia, na verdade, convenceu a si própria de que não estava numa
cobertura jornalística, e sim numa luta do bem contra o mal. Em vez de
reportar, passou a torcer e a trabalhar por um lado na campanha, convencida de
ter consigo a “superioridade moral”. Resultado: disputou uma eleição contra Jair
Bolsonaro e perdeu, por mais de 10 milhões de votos de diferença.
Não é função dos órgãos de comunicação disputar eleições, é
claro, muito menos perder. É o pior dos mundos. Já que decidiram fazer a coisa
errada, engajando o seu trabalho a favor de um lado e contra o outro, deveriam,
pelo menos, evitar o papelão de acabar surrados pelo candidato que declararam
“inimigo” e por seus quase 58 milhões de eleitores. Isso, para usar português
claro, significa que você está falando, mas ninguém está ouvindo o que você diz
— ou ouvindo tão pouco que não faz diferença nenhuma. É a tal “credibilidade” —
a sua capacidade de ser acreditado entre os semelhantes, ou levado a sério por
eles. No caso da eleição de Jair Bolsonaro, a credibilidade foi para o espaço.
Como passar seis meses seguidos ou mais fazendo uma operação contínua contra o
candidato menos equipado materialmente para disputar a campanha eleitoral e
constatar, no dia da apuração, que todo esse esforço não resultou em nada? A
conclusão é que o público está pouco ligando para o que a mídia lhe diz. A
partir daí, ela se torna irrelevante na vida real. Fica como arquibancada em
jogo de futebol: xinga o juiz de ladrão e o técnico de burro, mas não altera em
nada o resultado do placar.
Os fatos estão aí, confirmando a futilidade de projetos para
ganhar eleições livres, hoje em dia, sem combinar o resultado com as pessoas de
carne e osso que vão votar. Inventou-se como estratégia, desde o começo, que o
ex-presidente Lula era candidato à Presidência da República em 2018 — não
apenas isso, a mídia garantia que ele era o favorito disparado para ganhar. Foi
uma falsificação integral. Lula não podia ser candidato, porque estava e está
na cadeia, condenado a mais de doze anos como ladrão em duas instâncias da
Justiça brasileira. Mas os “institutos de pesquisa” asseguravam que Lula tinha
“40% dos votos”, que havia “avançado mais X pontos”, que ganhava de todos os
outros candidatos — e a imprensa, em peso, reproduzia essa fábula em suas
manchetes. Só quando o próprio Lula, em pessoa, anunciou que não era candidato,
as pesquisas retiraram o seu nome da lista. No meio-tempo, manteve-se viva por
vários dias a ficção de que “a ONU” iria obrigar o Brasil a aceitar a
candidatura — chegaram a convocar o STF para julgar essa aberração. Sai Lula,
entra Fernando Haddad. Sete dias antes da eleição, uma das “pesquisas”” deu
Haddad com “22%”, numa “ascensão” que só poderia levá-lo, matematicamente, à
vitória. Para não deixar dúvidas, todos os meios de comunicação repetiram até o
dia da eleição que Bolsonaro perderia de “todos os outros candidatos” no
segundo turno, em “todas as pesquisas”. Deu-se o exato contrário.
Nos dias finais da campanha apareceu uma reportagem tentando
mostrar que haviam sido feitas doações para que Bolsonaro pagasse uma campanha
de notícias falsas contra os adversários — em cima disso, pediu-se a “anulação
do primeiro turno”, inclusive com atrizes da Globo exigindo, num vídeo
eleitoral especialmente irado, “uma atitude” do Supremo. Falsa, mesmo, só a
reportagem — reproduzida maciçamente através da imprensa até morrer de
inanição, por ausência de fatos, de pé e de cabeça. A brutal tentativa de
homicídio que Bolsonaro sofreu em Juiz de Fora foi geralmente tratada como uma
notícia menor, fruto natural do “ódio” trazido à campanha em grande parte por
ele próprio. Até hoje, a maioria dos jornalistas se refere ao episódio como “a
facada”; é jornalisticamente incorreto escrever que um criminoso quis
assassinar Bolsonaro. Desde o início da campanha, os mais potentes cérebros da
análise política do Brasil deram como fato científico que a candidatura de
Bolsonaro iria “desaparecer” assim que começasse o horário eleitoral
obrigatório na TV, no qual ele contava com poucos segundos. No mundo dos fatos,
Bolsonaro ganhou a eleição — e o candidato que tinha o maior tempo de TV não
conseguiu nem 5% dos votos.
Mais do que tudo, talvez, a mídia não chegou nem perto de
entender uma realidade evidente: a maioria do público brasileiro, nos dias de
hoje, pensa basicamente o contrário do que pensam os jornalistas e os donos dos
veículos de comunicação. Tem valores opostos aos dos comunicadores. Aprova o
que a mídia condena. Condena o que a mídia aprova. É a favor da polícia, que a
imprensa considera inimiga dos pobres, e contra os bandidos, que os jornalistas
consideram vítimas da injustiça social. Os heróis da imprensa, como a vereadora
Marielle, não são os heróis da população. E nem o que a imprensa divulga
maciçamente como sendo problemas essenciais para o Brasil é percebido da mesma
maneira pela massa — homofobia, racismo, fascismo, machismo, “agrotóxicos”,
terras indígenas, torturas cometidas quarenta anos atrás são vistos mais com
indiferença do que com indignação. Em questões como a conveniência de eliminar
as diferenças entre os gêneros masculino e feminino, deixando em segundo plano
as leis da biologia, mídia e maioria estão simplesmente em posições opostas.
Naturalmente, há um preço a pagar por tudo isso. Ele aparece
na dificuldade cada vez maior, por parte da mídia, de fazer avanços na única
questão que realmente interessa: a batalha pelo público. Ninguém tem ouvido
histórias de veículos que triplicaram seus leitores ou sua audiência nos
últimos anos; é perfeitamente óbvio, assim, que o método que vem sendo
utilizado pela mídia para fazer o seu trabalho está dando errado. Como poderia
estar dando certo se os resultados são um desastre? O aviso das eleições está
aí. A televisão, em seu conjunto, deixou de existir como um fator de
importância numa eleição brasileira — é como se tivesse sido jogada uma bomba
de hidrogênio em cima dela.
Até quatro anos atrás era no programa eleitoral obrigatório
que tudo se decidia numa campanha; hoje ele não vale nada. Os “institutos de
pesquisa” também podem publicar os números que bem entenderem na mídia. Não são
capazes de mudar coisa alguma. Não quando dizem que Dilma Rousseff seria “a
senadora mais votada do Brasil” — e ela acaba em quarto lugar. Os meios de
comunicação, enfim, fizeram uma guerra sem descanso contra Bolsonaro — e sua
influência foi absolutamente nula no resultado da eleição.
A internet, o Facebook, o Twitter e o restante do arsenal
nuclear que a tecnologia eletrônica despeja a cada momento sobre o universo das
comunicações mudaram a política no Brasil em 2018. Há muitos anos vêm transformando
a imprensa num animal cada vez mais diferente de tudo o que possa ter sido — e
não há sinais de que essa história venha a tomar um novo rumo. Em momentos como
este, é uma tragédia que a imprensa brasileira venha demonstrando, no conjunto
daquilo que publica em seus veículos, uma inteligência inferior à inteligência
média dos seus leitores, ouvintes e espectadores. Desse jeito, torna-se cada
vez mais inútil para eles. Da mesma maneira, é complicado manter-se em estado
de hostilidade eterna perante o público. É como dizer a todos: “Não queremos
mais você por aqui. Vá ler outra coisa. Pista”. Ninguém vai chegar a lugar
nenhum por aí.
Texto e imagem reproduzidos do Facebook/J.R. Guzzo
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