quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Direitos humanos para humanos sem direitos

A naturalização da morte é um das vias para tornar a sociedade ainda mais violenta. 
(JUVENTUDES CONTRA VIOLÊNCIA)

Publicado originalmente no site Brasil El País, em 10 DEZ 2018

Direitos humanos para humanos sem direitos

O ser humano que não conhece os próprios direitos está fadado a se resignar com a tirania de quem trata garantias básicas como privilégios

Por Breiller Pires

Para salvar uma senhora de 83 anos rendida como refém, dois policiais aproveitam a distração do assaltante e o executam com cinco tiros em plena luz do dia. A tentativa de roubo a uma joalheria de Valença, no sul fluminense, termina em morte. Testemunhas filmam a cena como se fosse um jogo de futebol e comemoram seu desfecho como um gol em final de campeonato. A quatro dias do 70º aniversário da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o Brasil escancarado em mais uma tragédia para a conta do Rio de Janeiro celebrava sem constrangimentos seu irremediável processo de desumanização.

Os aplausos diante do corpo estendido na rua poderiam ser interpretados como um desabafo perante a exaustiva sensação de insegurança, que agora se estende às pequenas cidades, ou um gesto de reconhecimento pela ação da polícia que mais mata e mais morre ao libertar a refém, não fossem gritos tal qual os de torcida num estádio que bradavam “atira nele”, “pega fogo”, “mata logo”. O que de fato se comemorava naquela manhã da última quarta-feira era a materialização do lema “bandido bom é bandido morto” ao alcance dos olhos. Um deleite coletivo pelo abate do assaltante.

Tratados como heróis, policiais receberam cumprimentos de Jair Bolsonaro nas redes sociais, prontamente respondidos pela PMERJ, que prestou continência ao “Exmo. presidente eleito”. Em uma situação extrema, que representava risco à vida de uma mulher, os agentes agiram como manda o protocolo das forças de segurança. Entretanto, um incidente resolvido com o assassinato de um ser humano, independentemente do delito praticado, jamais deveria ser motivo de comemoração. A naturalidade com que passamos a encarar a morte na rotina de uma sociedade violenta insinua que a barbárie tem vida própria, está dissociada da nossa conduta e só pode ser combatida com mais sangue derramado. Esses sentimentos primitivos, da sede por justiceiros e linchamentos ao regozijo com a bala na cabeça do ladrão, são diariamente insuflados por políticos e discursos midiáticos irresponsáveis.

Bordões como “CPF cancelado”, utilizados por pregadores do caos na televisão em referência a suspeitos abatidos pela polícia, dão um toque de humor sádico à selvageria. A assimilação da violência como norma só foi possível graças à popularização de programas policialescos que, não bastasse o empenho em construir uma narrativa que resume o país à fama de recordista de homicídios, contribui para distorcer o significado dos direitos humanos, demonizando-os sob o malfadado estigma de “muleta para defensores de bandido”.

Vende-se a falsa ideia de presos gozam de regalias e criminosos são superprotegidos pela lei. Ignora-se, no entanto, que o Brasil possui a terceira maior população carcerária do mundo, sendo que mais de um terço corresponde a presos que nem sequer foram julgados, submetidos – salvo raras exceções, onde o índice de reincidência após cumprimento da pena costuma ser bem menor que a média nacional – a condições de tratamento desumanas. Ao contrário da lenda que virou verdade nos grupos histéricos do Whatsapp, ninguém comete um crime para viver de “bolsa cadeia”. Menos de 8% dos detentos brasileiros têm direito ao auxílio-reclusão, um benefício do INSS destinado apenas aos dependentes do preso de baixa renda (salário inferior a 1.300 reais) com histórico de contribuição à Previdência Social.

O auxílio-reclusão, por sinal, ilustra bem para que serve um direito humano. Se todas as famílias de contribuintes devem ser contempladas com o benefício em caso de morte, doença, afastamento ou invalidez, as dos encarcerados também precisam se enquadrar na mesma regra, pois não é justo que elas paguem por eventuais crimes cometidos pelos provedores de seu sustento. Princípios básicos dos direitos humanos se estabelecem pelo caráter da universalidade: só fazem sentido se compreenderem todos os indivíduos. Justamente para evitar que sejam convertidos em privilégios de poucos. A partir do momento em que negamos um direito fundamental a qualquer pessoa, ele deixa de valer para todo o resto.

Como cobrar punição rigorosa para bandidos sem farda se os maus policiais já contam com licença para matar e, caso o futuro governo cumpra a promessa de ampliar os excludentes de ilicitude, abusarão ainda mais da impunidade institucional para transformar a premissa de proteger o cidadão em aparato de genocídio? Qual o sentido de dizer que os direitos humanos atrapalham o trabalho da polícia ao passo que um de seus propósitos é evitar que agentes de corporações militares arrisquem a vida em guerras sem sentido? Por que acreditar que a redução da maioridade penal pode diminuir a violência sem antes levar em consideração que, numa mesma cidade, convivem jovens que saem da sala de aula preparados para o vestibular e outros, da mesma idade, que se escondem de tiroteios debaixo das carteiras? O que se esconde por trás de tantos apelos em prol da revogação do Estatuto do Desarmamento em um dos países mais perigosos para ativistas e militantes, capaz de promover um notório estimulador do ódio a movimentos sociais a ministro do Meio Ambiente no mesmo fim de semana do assassinato de dois trabalhadores sem terra? A perspectiva das campanhas difamatórias contra os direitos humanos despreza a realidade, dados e inúmeros estudos que refutam a tese de que a maioria da população desfruta de direitos demais.

Não por acaso, a Declaração Universal dos Direitos Humanos sublinha que “toda pessoa tem direito à educação”. Seus mandamentos deveriam ser disciplina obrigatória nas escolas. O ser humano que não conhece os próprios direitos está fadado a se resignar à tirania de quem trata garantias básicas como privilégios, banaliza a matança e sentencia que as minorias se curvem à maioria. O termo “minorias”, para que fique claro, não está relacionado ao tamanho de um grupo, mas sim a seu grau de vulnerabilidade: pobres, negros, mulheres, índios, LGBTs. Os direitos humanos têm de estar ao alcance de todos, mas, principalmente, dos humanos sem direitos.

Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com

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