Associados frequentemente a questões ligadas à segurança, como tratamento
digno para presos, princípios abarcam questões que incluem garantia
à liberdade de expressão, acesso à saúde, educação e moradia.
AFP CONTRIBUTOR VIA GETTY IMAGES
Por que frases como "direitos humanos é direito de
bandido" são repetidas 70 anos após a Declaração Universal de Direitos
Humanos?
By Marcella Fernandes
Setenta anos após a adoção da Declaração Universal de
Direitos Humanos, a ideia de que qualquer pessoa têm direitos básicos
independentemente de sua cor, sexo, religião, opinião política ou ficha
criminal ainda enfrenta resistência expressada em frases como "direitos
humanos é direito de bandido" e "direitos humanos para humanos
direitos".
Na avaliação de especialistas, o processo de
redemocratização após a ditadura militar e o alto nível de desigualdade social
no País, além da própria disputa política sobre o tema, são fatores que
contribuem para entender esse estigma. "O conceito, a narrativa sobre o
que são os direitos humanos está em disputa permanente. É um processo em
construção e disputa", afirmou Rogério Sottili, diretor-executivo do
Instituto Vladimir Herzog e mestre em História, ao HuffPost Brasil.
Secretário nacional de Direitos Humanos nos governos Lula e
Dilma Rousseff, Sottili afirma que a associação do tema com a esquerda é uma
estratégia política. "Isso é parte da disputa. Você quer estigmatizar os
direitos humanos associando àquilo que você, a priori, pensa que é negativo. Ah,
só defende o que está errado. Mas o que está errado? A esquerda é errada? A
população LGBT está errada?", questiona.
Para Sottili, conquistas "extremamente
significativas" com respeito à cidadania, a partir da constituição de um
pacto universal, mostram que o estigma sobre os direitos humanos não é algo
hegemônico. Ele admite, contudo, que no momento atual, o discurso de ódio,
"contrário aos direitos humanos, está sendo majoritário".
Para 6 em cada 10 brasileiros, "os direitos humanos
apenas beneficiam pessoas que não os merecem, como criminosos e
terroristas", de acordo com a pesquisa "Human Rights in 2018 - Global
Advisor" da Ipsos, divulgada em agosto.
Já um levantamento feito pelo Datafolha em 2016 a pedido do
Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostra que 57% dos brasileiros
concorda com a afirmação "bandido bom é bandido morto".
A opinião popular se refletiu nas urnas. A popularidade do
presidente eleito, Jair Bolsonaro, foi construída também em cima de críticas à
defesa de direitos humanos e a favor de um discurso punitivista.
Apesar da força dessa narrativa, especialistas apontam que
muitos dos que repetem essas frases não têm conhecimento do que são direitos
humanos. Associados frequentemente a questões ligadas à segurança, como
tratamento digno para presos, esses princípios abarcam uma série de questões,
que incluem a garantia à liberdade de expressão, acesso à saúde, educação e
moradia, dentre outros.
Declaração cantada
Com o objetivo de melhorar a comunicação sobre o tema , o
CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) lança nesta segunda-feira (10)
um clipe com 30 artigos da Declaração cantado pela rapper Karol Conka e com
participação da cantora Daniela Mercury. A presidente da Associação Nacional de
Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson, também participou da gravação.
Desigualdade social
A ineficiência do Estado em garantir serviços públicos de
qualidade e a alta desigualdade social no Brasil acabam, por sua vez, levando a
uma percepção de escassez de direitos por parte da população, o que se
contrapõe à proposta de universalidade dos direitos humanos.
"Quando a gente está numa sociedade tão desigual como a
nossa, esses direitos não estão garantidos para todo mundo. Pouquíssimas
pessoas de fato conseguem exercer esses direitos fundamentais. Então se não é
para todo mundo, deve ser só para quem merece - e quem comete o crime teria
menos direito porque não fez por merecer", explica a pesquisadora do
Núcleo de Estudos da Violência da USP e mestre e doutoranda em Sociologia pela
USP (Universidade de São Paulo), Ariadne Natal.
Dados do IBGE divulgados na última quarta-feira (5) mostram
que a pobreza e a extrema pobreza aumentaram no Brasil nos últimos anos. Em
2016, eram 52,8 milhões de pessoas pobres (25,7% da população). No ano
seguinte, esse número cresceu para 54,8 milhões (26,5%).
Na avaliação da especialista, a ideia de merecimento de
direitos básicos é parte de uma visão elitista de como a sociedade deveria
funcionar, em que questões como ter direito a defesa em um julgamento criminal
é um privilégio e não um direito.
Dados do IBGE divulgados na última quarta-feira (5) mostram
que a pobreza
e a extrema pobreza aumentaram no Brasil nos últimos anos.
Em
2016, eram 52,8 milhões de pessoas pobres (25,7% da população).
No ano
seguinte, esse número cresceu para 54,8 milhões (26,5%).
BLOOMBERG VIA GETTY IMAGES
Apesar do marco da Declaração, em 1948, a ideia de que
humanos têm alguns direitos inalienáveis está presente em processos históricos
anteriores, como a Revolução Francesa, no século 18.
Natal alerta para a expansão dessa lógica do âmbito
individual para o coletivo, uma vez que a construção do Estado no mundo
ocidental parte justamente da ideia de redução das desigualdades e da mediação
de conflitos. "O desafio é quando você está construindo um Estado que vai
funcionar nessa lógica [de merecimento] também. Essa não é a melhor forma de
conseguir um sistema de igualdade para as pessoas", afirma.
Ditadura militar
Além da alta desigualdade social entre os brasileiros, o
histórico de discussão dos direitos humanos no Brasil também ajuda a entender a
estigmatização do tema, que começou a ser debatido na redemocratização. "A
ideia de direitos humanos está muito alinhada à ideia de democracia. É difícil
você pensar em respeito aos direitos humanos em um estado não democrático. Um
Estado autoritário pressupõe suprimir direitos básicos", afirma Natal.
Na abertura do regime, no início da década de 1980, houve
uma explosão da violência, associada por parte da sociedade ao fim do
autoritarismo, apesar de ter origem em outros fatores.
"Você têm um contexto de forte desigualdade, formação
das metrópoles, muitas cidades com grave precariedade, sem condições de prover
o mínimo para as pessoas e um processo de explosão de violência, principalmente
nas grandes capitais. Como a gente tem a passagem para a democracia e a
violência, que deveria diminuir, explode? Junto com isso vem o discurso de
tentar deslegitimar os direitos humanos, de 'tá vendo, começaram a garantir
direitos para as pessoas e a violência cresceu'", destaca a especialista.
Ainda que a promoção de direitos ainda estivesse em fase de
construção, esse discurso ganhou maior visibilidade a partir da atuação da
mídia, segundo a especialista. "Esse processo tem uma parcela considerável
de uma imprensa sensacionalista, que tem esse papel de difundir que a culpa da
explosão da violência foi da garantia de direitos, que nem estava
consolidada", completa Natal.
"Defendemos trabalhar o direito à memória, verdade e
justiça. O povo que não
conhece sua história, repete os mesmo erros", diz
o diretor-executivo
do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili. ( PILAR OLIVARES/REUTERS)
A redemocratização também implica uma limitação do poder do
Estado e havia certa resistência, dentro das forças de segurança, em serem
controladas.
Para o diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, o
esclarecimento do que são direitos humanos passa pelo reconhecimento das
violações da ditadura. "Defendemos trabalhar o direito à memória, verdade
e justiça. O povo que não conhece sua história repete os mesmo erros. O Brasil
não conhece a história de violência e reproduz discursos de ódio promovidos
pelo processo de violência. A gente tem que discutir isso", afirma
Sottili.
O fortalecimento das instituições democráticas é também
outro fator fundamental para a promoção da igualdade de direitos básicos, além
de processos educativos da população. "A educação em direitos humanos é
estruturante da mudança dessa cultura. É através da educação livre. Nada do que
está sendo proposto. Através da participação política, social, da cultura, da
arte, da liberdade de expressão", afirma.
O entendimento de Sottili vai de encontro às propostas do
governo Bolsonaro. Além das críticas à imprensa, o presidente eleito e aliados
têm como uma das principais bandeiras o projeto de lei Escola sem Partido, que
pode limitar o debate no ambiente escolar. A bancada conservadora se esforça
para aprovar ainda em 2018 o texto que impede discussões de gênero na sala de
aula.
Texto e imagens reproduzidos do site: huffpostbrasil.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário