Publicado originalmente no site Brasil El Pais, em 3 de fevereiro de 2019
E agora?
É preciso reconstruir os laços de confiança entre a sociedade e o poder, o que requer liderança e ação institucional
Por Fernando Henrique Cardoso
Fazer campanha é uma coisa, governar é outra. O novo governo
mal começou, por isso tenho sido cauteloso ao falar dele. Dei algumas
entrevistas na França e participei de discussões. Em um diálogo na Maison de
l’Amérique Latine sobre o último livro de AlainTouraine quatro ou cinco
ativistas pertencentes a um “coletivo” levantaram uma faixa. Nela se lia: “Lula
livre!” e algo sobre os “golpistas”. Como não fui eu quem mandou prender Lula,
foi a Justiça, nem jamais participei de golpe algum, vi o “ato” com fleuma.
Mas, de ato em ato, se vai formando no subconsciente das pessoas e da mídia a
convicção de que houve um golpe no Brasil que destituiu Dilma Rousseff.
Estaríamos agora, com a eleição de Bolsonaro, caminhando para o fascismo... As
perguntas feitas por alguns jornalistas tinham este pano de fundo. Que o
Governo é “de direita” é certo, assumidamente. Que haja fascismo, só com má fé.
Os que ouviram na TV Globo as declarações do general Mourão, podem
eventualmente discordar, mas nada há de fascismo nelas.
No governo existem tendências autoritárias e gente que vê
fantasmas no “globalismo”. Também há pessoas que, contra os supostos males da
“ideologia de gênero”, advogam que meninos usem roupas azuis e meninas,
cor-de-rosa. Mais grave, existem pessoas do círculo familiar do presidente que
parecem ter relações bem próximas com as milícias cariocas. Já houve quem
dissesse, e é certo, que a democracia é como uma planta tenra, precisa ser
regada todos os dias. Cuidemos, pois, para evitar o pior. Que a essas
tendências se oponham outras, abertamente democráticas.
O Governo atual é consequência do medo (da violência que se
espraiou), do horror à corrupção política (a Justiça e a mídia mostraram que
ela é epidêmica) e da ansiedade pelo “novo”. Que temos culpa no cartório, os do
“antigo regime”, é inegável. Se não culpa pessoal, culpa política. Neste caso,
de pouco adianta bater no peito.
É preciso reconstruir os laços de confiança entre a
sociedade e o poder, o que requer liderança e ação institucional. Não parece
que o presidente atual tenha as qualidades para tanto. Mas também as oposições
estão em jogo: se simplesmente se opuserem a tudo ou se aderirem acriticamente
ao governo, pobre democracia.
O PSDB precisa reconhecer que perdeu feio e analisar o
porquê disso, bem como atualizar-se. Será capaz? Não sei. O mundo mudou muito,
a própria “social-democracia” é datada. Ela correspondeu ao que de melhor
poderia haver nos marcos do capitalismo industrial, ao longo do século 20: a
conciliação entre “a lógica do capital” e os valores da liberdade e da
igualdade, do ideal democrático. A expressão dessa conciliação foram os Estados
do Bem-Estar construídos nos países industriais avançados, nos quais se
inspiraram líderes e partidos latino-americanos que chegaram ao poder depois do
predomínio do autoritarismo na região.
A resposta aos novos desafios é mais difícil — não só no
Brasil e na América Latina, também nos “países centrais” — do que foi a
resposta socialdemocrata na época do desenvolvimento capitalista
urbano-industrial. Como dar ocupação e renda à maioria da população em
economias globalizadas em que o aumento de produtividade dependerá cada vez
menos de mão-de-obra não especializada e mais de conhecimentos, habilidades,
capacidades de adaptação e invenção que podem ser oferecidos por trabalhadores
especializados ou máquinas inteligentes? Mesmo que se possa assegurar uma renda
mínima decente a todos, como resolver a questão da ocupação das pessoas
marginalizadas do mercado de trabalho? São questões para as quais não existem
respostas prontas. Mas tampouco o liberalismo econômico as tem. É ilusão
acreditar que o crescimento da economia contemporânea solucionará por si os
novos desafios da “inclusão social”.
E nós aqui, vamos empurrar a questão da equidade para
debaixo do tapete e rezar para que o ”mercado” resolva tudo? É a tal tipo de
visão que os socialdemocratas vão aderir? Ou os setores da sociedade fortemente
comprometidos com a democracia, com as liberdades e com ideais de maior
igualdade e dignidade humana terão forças para atualizar o ideário e abrir
caminhos novos? A ver... É este o enigma que nos espera. Diante dele,
xingamentos e conceitos historicamente esvaziados (como o de fascismo) são
insuficientes tanto para explicar o que ocorre na sociedade quanto para apontar
os rumos do futuro.
Nessa falta de rumos tanto o governo como as oposições estão
enredados. Até o momento a agenda governamental é a da campanha: bandido bom é
bandido morto; cadeia para os corruptos; adesão a outro pensamento único, o de
Trump, e assim por diante. Mas a solução para os problemas da criminalidade, da
violência, da corrupção, do lugar do Brasil no mundo não admitem respostas
singelas.
É preciso retomar o ritmo positivo da economia, o que
depende de equilibrar as contas públicas e assegurar a solvência do Estado. Por
isso, entre as múltiplas questões em pauta, a reforma da Previdência prima. Seu
andamento depende não apenas de coordenação política no Congresso, uma tarefa
complexa, mas também de o Governo definir um rumo claro a seguir e convencer a
sociedade de que esta reforma é um passo necessário. Não se põe em marcha tal
processo sem uma visão convincente sobre para onde se quer conduzir o país.
Esse desafio é não só do Governo, mas do país. Portanto, as
oposições têm papel em seu encaminhamento e solução. Jogar fora a “pauta
social” e substitui-la por outra, “econômica”, não nos conduzirá pelo bom
caminho. Aderir ao Governo, para obter vantagens políticas repugna ao
eleitorado. Mantenhamos nossas crenças, tomemos posições claras, sem adesismo
ao Governo nem irresponsabilidade com o país. Sobretudo, imaginemos, critica e
criativamente, como atualizar o ideário da socialdemocracia, cujas fronteiras
não se limitam ao PSDB.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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