Publicação compartilhada do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 22 de maio de 2021
Da utopia deles ao nosso retrocesso
Se permanecer, essa estúpida polarização política nos meterá
em mais dez anos de crise, adverte Bolívar Lamounier em artigo publicado no
Estadão:
A História registra numerosas utopias sem pé nem cabeça –
projetos de sociedade somente realizáveis em sonhos – e o curioso é que nem
todas elas foram concebidas por idiotas.
Retrocessos, sim, quase sempre são obra de debiloides, mas
alguns dos maiores filósofos perpetraram quimeras sem pé nem cabeça. Um exemplo
notável é Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), indiscutivelmente um dos maiores
filósofos de todos os tempos. Rousseau pretendeu que uma sociedade só teria um
governo verdadeiramente legítimo se os interesses de cada cidadão coincidissem
ponto por ponto com o interesse geral da sociedade. É lógico que nenhuma
sociedade jamais se aproximou sequer remotamente de tal condição. O sisudo Karl
Marx, ícone de um suposto realismo, algumas vezes também ciganeou pelos
labirintos da quimera. Em 1844, somente 12 anos após a primeira reforma
eleitoral da Inglaterra, ele não mediu louvores ao sufrágio universal, vendo-o
como o aríete que poria abaixo a organização do poder baseada nos estamentos
(nobreza, clero, povo e agricultores), aquele resto petrificado dos séculos
anteriores. Dividindo o Estado entre tais “corpos”, a Assembleia dos Estamentos
também dividia o próprio cidadão, cuja participação nos negócios públicos se
converte numa ilusão e, pior, numa ilusão que, na prática, se transforma em
monopólio da burocracia governamental. Apenas nove anos mais tarde Marx se
convenceu de que o sufrágio eleitoral nunca deixaria de ser uma ilusão e que
uma sociedade verdadeiramente integrada exigia uma revolução, a derrubada do
capitalismo, que acarretaria o desaparecimento do Estado e das próprias classes
sociais, abrindo, finalmente, a larga avenida que levaria à sociedade sem
classes.
Se os séculos 18 e 19 foram a quadra da qual brotaram tão
doces quimeras, o século 20 foi a que revelou em toda a sua extensão as
macabras consequências para as quais elas contribuíram. O primeiro grande
exemplo foi o Holodomor – o terror meticulosamente executado por Stalin na
Ucrânia no inverno de 193s2-1933. O termo ucraniano descreve um tipo bem
específico de violência: a morte forçada de milhões por inanição. A fome como
instrumento do terror, como se infere da expressão inglesa “terror-famine”.
Veja-se a esse respeito o magnífico filme ucraniano Holodomor, disponível no
YouTube com legendas em português.
Mas, claro, a bestialidade do Holodomor ainda foi pouco
comparada à “solução final” de Hitler. Auschwitz não remonta em linha direta às
utopias dos dois séculos anteriores, mas mantém uma ligação umbilical com a
destruição da ideia de normalidade na sociedade e na política. A utopia
hitlerista seria o próprio Estado hitlerista: o Terceiro Reich. A “banalização
do mal” de que fala Hannah Arendt.
O Brasil não nutriu utopias ou violências políticas que
possam ser comparadas às da URSS, da Alemanha e da China. Um país atrasado,
escravista, monocultor, cuja população ainda hoje resvala no analfabetismo, não
é capaz de alimentar pensamentos tão alucinados e muito menos de levar à
prática a bestialidade sistemática dos Estados totalitários. Mesmo a decadência
foge um pouco ao seu alcance; sua mediocridade é tanta que até o retrocesso é
difícil. Mas num mundo cada vez mais arrastado por processos econômicos, políticos
e até sanitários que há alguns anos ninguém poderia prever, a desatenção pode
ser fatal. Considere-se, a propósito, o formato de nossa estrutura social.
Imaginemos que ela se assemelhe a um sino, com partes minúsculas nas duas
pontas inferiores e um corpo muito maior no meio, convergindo para o ápice.
Quanto mais gente houver nesse meio e quanto mais baixo o ápice, mais perto
estaremos da sonhada “sociedade de classe média”. A ilusão de que logo nos
aproximaríamos desse desenho aliviou nossos tormentos nos velhos tempos do
“nacional-desenvolvimentismo”. O resultado não foi bem esse e, por incrível que
pareça, até poucos anos atrás Lula e a presidente Dilma Rousseff entoavam a
cantilena de que estaríamos quase chegando lá, ou seja, com “um pé no Primeiro Mundo”.
Não se requer especial argúcia para entender que o aumento
do meio do sino mantém conexão direta com a disseminação do ressentimento em
relação às autoridades e às instituições, com o relativismo moral e a corrupção
(ainda mais tendo em vista que a sabedoria de nossos constituintes de 1988
absolveu de antemão a maior parte dos criminosos de colarinho branco) e, só
para concluir minha lista de exemplos, a degradação do ensino e a liquefação da
motivação para o estudo. Não choverá no molhado quem disser que esse é o pano
de fundo da estúpida polarização política em que nos metemos, e que certamente,
caso permaneça, nos meterá em pelo menos mais dez anos de crise. Os riscos que
estou me esforçando para delinear constituem um feixe cada vez mais compacto,
que cedo ou tarde robustecerá a capacidade de retroceder de que antes
carecíamos. Como cantaria o imortal Agustín Lara, “y así pasaremos diez años
más”.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi.blogspot.com
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