sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Artigos de Pedro Eloi, sobre o Livro e o Filme: "Ainda Estou Aqui"


Artigos compartilhados do BLOG DO PEDRO ELOI, de 18 de abril de 2017

Ainda estou aqui. Marcelo Rubens Paiva.
Por 
Pedro Eloi Rech

Conheci Marcelo Rubens Paiva pelo seu livro Feliz Ano Velho. O li, assim que foi publicado. O foco do livro foi o seu acidente, que o deixou tetraplégico. Conhecia razoavelmente a história do seu pai, o bravo deputado do PTB, Rubens Beyrodt Paiva, cassado pela ditadura militar, ainda em 1964, e dado como desaparecido em 1971. Na verdade, morreu sob forte tortura, que lhe provocou hemorragias internas. Nada sabia de Eunice Paiva, a mãe de Marcelo Rubens.

Esta semana tive com ele um reencontro através do Ainda estou aqui, o seu mais recente livro, lançado em 2015. Ganhei o livro de presente do meu filho Iuri, que entrou em contato com ele através de um clube de leitura que ele tem com seus colegas de trabalho. Foi um reencontro muito agradável, pois Marcelo Rubens é efetivamente um grande escritor. Foi também um reencontro triste, pela realidade retratada. Também sempre manifesto a minha preferência por biografias e livros de memória.

Em Ainda estou aqui, Marcelo Rubens privilegia dois temas que são o fio condutor do livro. O seu pai e a sua mãe. Do pai conta tudo sobre o seu desaparecimento e a longa luta pela obtenção do atestado de óbito. De sua mãe nos conta como Eunice Paiva refez a sua pacata vida de dona de casa de classe média alta, que aos 41 anos se tornou viúva de um marido dado como desaparecido. Corajosamente tomou a frente da família, formando-se em direito, tornou se advogada de prestígio, com dedicação especial à causa da defesa indígena. Com a vida refeita, lhe sobrevém o mal de Alzheimer.

O livro está dividido em três partes, tendo a primeira cinco capítulos e a segunda e a terceira, seis. Os capítulos recebem títulos. Os capítulos da primeira parte tem os seguintes títulos: 1. Onde é aqui. Fala de sua mãe, advogada e a sua interdição, aos 77 anos, pela doença de Alzheimer. 2. A água que não era mais do mar. Aqui são relatadas as memórias de sua infância e os episódios de 1971, o ano do desaparecimento de seu pai e, ainda, a obtenção do seu atestado de óbito em 1995. 3. Blá-blá-blá. Continua relatando as memórias de infância e sobre o encontro das famílias de seus pais. Moravam em uma fazenda na cidade de Eldorado, em São Paulo. Toca na questão da doença da mãe, quando para ela, as conversas se transformaram em blá-blá-blá. 4. Cometas da memória. Se dedica especialmente à memória da família, uma família tipicamente burguesa, de alta classe média. Fala da mudança para o Rio de Janeiro, da morte do pai e, a mãe refazendo a sua vida, em Santos, a cidade de origem. 5. Mãe protocolo. Este capítulo é dedicado à mãe, agora já em São Paulo, concluindo o curso de direito e se dedicando ao ofício da advocacia. Conta ainda de seus tempos de vida estudantil e relembra o seu triste acidente de 1979.

A segunda parte tem seis capítulos. 1. Merda de ditadura. Busca as memórias do golpe militar, a cassação do mandato de seu pai, a fuga para o exílio e a sua volta, para então ocorrer o seu desaparecimento em 1971. 2. É a peste, Augustin - Perdão, tenho que morrer. O capítulo versa sobre a tortura dos militares e torturas policiais, com foco, obviamente, em seu pai. 3. O telefone tocou. No feriado de 20 de janeiro o exército vem prender o seu pai. 4. Doze dias. Relata a espera da volta do pai, que nunca chega e também a prisão da mãe e da irmã. A mãe ficou presa por 12 dias, a irmã foi solta no dia seguinte. 5. Ou, ou, ou, ou, ou. É sobre o assassinato do pai e a versão oficial da fuga. A morte "em guerra". 6. O sacrifício. Aqui são relatados os motivos da prisão, sendo o principal a interceptação de uma carta vinda do Chile, para onde tinham ido as pessoas trocadas pelo embaixador suíço.

A terceira parte tem mais seis capítulos. 1. Depois do luto. Conta sobre a mãe que assume as tarefas do comando da família, a sua ida para Santos e São Paulo e o exercício da profissão de advogada. Fala ainda de sua vida estudantil, e das dificuldades na escolha da profissão. 2. Você lembra de mim? Dois temas principais são abordados, os desaparecimentos após prisões e tortura e a luta da mãe por justiça. A chegada  da doença de Alzheimer também recebe uma abordagem. 3. Já falei do suflê? Todo o foco deste capítulo é a mãe. A sua dedicação ao direito e a nobre questão da defesa dos povos indígenas e, a sua especialidade na cozinha, o suflê. 4. O choro final. Este capítulo é especial, dedicado ao desvendamento dos mistérios que envolveram a morte do pai, o nome dos assassinos, a obtenção do óbito e o seu mestrado com foco em seu pai. 5. O alemão impronunciável. O foco está no alemão impronunciável, ou seja, o mal de Alzheimer. A aposentadoria da mãe aos 70 anos também é relatada, assim como a chegada da doença, em sua primeira fase. 6. O que estou fazendo aqui. É sobre o avanço da doença, aos seus estágios dois e três e a brava resistência. Por ocasião da conclusão do livro, em 2015, contava com 85 anos de brava resistência.

Em suma, um grande livro. Evidentemente que o foco principal é a luta da mãe para por a limpo a história do seu marido. Uma luta sem tréguas. Tudo foi desvendado, o nome dos assassinos, a causa da prisão, a falsidade da versão oficial e o fato de ter conseguido o tão sonhado atestado de óbito. É também um triste retrato do que foi a ditadura militar, das atrocidades cometidas. Leitura obrigatória para que histórias de desaparecimentos não se repitam, que ditaduras não se repitam. O tema do Alzheimer é tratado com profunda dignidade. Que doença!

Eu particularmente gostei de uma cartinha do pai, explicando para o filho e para as filhas, as razões de seu exílio. Uma explicação, ao mesmo tempo simples e bem profunda. Mas sobre isto farei um post especial. A sua volta do exílio foi também notável e inusitada. Em um voo de Paris para Montevidéu, com escala no Rio de Janeiro, simplesmente desceu do avião. Como não o incomodaram, ficou. Se tivesse ido para Montevidéu, a sua história certamente teria sido outra. O livro também me fez sentir um carinho todo especial pelo Marcelo Rubens, pela forma carinhosa com que retratou pai e mãe neste magnífico livro. E, ao Iuri, meus agradecimentos pelo belo presente.

---------------------------------------------------------------

Artigo compartilhado do BLOG DO PEDRO ELOI, de 14 de novembro de 2024

Ainda estou aqui, O filme.

Por Pedro Eloi Rech


Dia 11 de novembro fui ao Shopping Barigui, para assistir a uma das maravilhas do cinema mundial, Ainda estou aqui, filme dirigido por Walter Salles e tendo como protagonistas Fernanda Torres, Fernanda Montenegro e Selton Mello. O roteiro do filme é uma adaptação do livro de Marcelo Rubens Paiva, do mesmo nome, e que foi publicado no ano de 2015. A adaptação do roteiro ficou a cargo de Murilo Hauser e Heitor Lorega. O filme é sobre Eunice Paiva, uma mulher monumental. O filme teve  sua pré estreia no Festival de Veneza, onde foi aplaudido de pé, por dez minutos.

Vou situar brevemente e, em primeiro lugar, Marcelo Rubens Paiva, o autor do livro. Ele se tornou conhecido pelo seu Feliz Ano Velho, livro em que relata seu acidente, ocorrido na cidade de Campinas no ano de 1995 e que o deixou tetraplégico. O Ainda estou aqui, é o seu livro do ano de 2015 e que eu li no ano de 2017, depois de ganhá-lo de presente do meu filho Iuri. O livro tem o foco em seus pais Rubens e Eunice Paiva. O que esta família tem de singular? Vamos então aos seus personagens. Antes, deixo a resenha do livro.

Rubens Paiva foi um deputado federal, eleito pelo PTB de São Paulo, no ano de 1962. Já em 1964 teve o seu mandato cassado pela recém instaurada ditadura militar. Então, depois de inúmeros percalços e, na condição de engenheiro, se estabelece na construção civil, no Rio de Janeiro. Já Eunice Paiva cursou Letras na aristocrática e conservadora Universidade Mackenzie, onde conviveu com pessoas do mundo das letras. Fixaram residência no Rio de Janeiro, no bairro do Leblon. Talvez um dado interessante precise ser mencionado. A família de Rubens Paiva tinha propriedades no Vale do Ribeira, onde ocorreram as guerrilhas de Lamarca. Isso lhe atraiu uma constante vigilância. No Leblon viviam a típica vida de classe média alta, com cinco filhos, quatro meninas e o caçula Marcelo Rubens.

Em janeiro de 1971 a família recebe uma correspondência vinda do Chile e, a partir dela, a família passa a viver o verdadeiro estado de terror de um regime cruel e assassino. Rubens é detido (preso, como mais tarde será provado) e torturado até a morte, mas será dado como desaparecido. Eunice também foi presa, por 12 intermináveis dias de tortura psicológica. Uma das filhas, então com apenas 15 anos também passou pela prisão. Aí já entramos na narrativa ou no roteiro do filme, e Eunice passa a ser a grande protagonista. Imaginem a situação!

Sem marido, sem rendas, cinco filhos para criar (isso a obriga a disponibilizar patrimônio) e com o nome da família enlameado, uma vez que a mídia, além de outras instituições, transformaram o golpe militar na "Revolução Redentora", que livrara o Brasil dos "facínoras comunistas". Eunice assume o comando! Muda-se para São Paulo, volta para a Mackenzie, agora no curso de Direito, e se torna uma conceituada e prestigiada advogada. Além dos cuidados com os filhos, ela assume duas grandes causas: desvendar a morte do marido e assumir a defesa das causas indígenas. (Junto com Manuela Carneiro da Cunha, autora do livro Índios no Brasil: história, direitos e cidadania, conseguiram que figurasse na Constituição de 1988, o seu artigo 231).

Com relação ao marido, em 1996 (sob FHC) consegue, pela Lei dos Desaparecidos, o seu Atestado de Óbito, sem, no entanto saber sobre o paradeiro do corpo. Mais tarde, com a instituição da Comissão Nacional da Verdade (Dilma Rousseff), foi confirmada a sua morte no Doi-Codi, órgão submetido ao exército, sob tortura, bem como a identificação dos assassinos torturadores. Estes, no entanto, nunca sofreram qualquer tipo de punição, conforme depoimento de Marcelo Rubens, ao jornalista Juca Kfouri, no TVT. A impunidade favorece a repetição dos fatos, triste constatação.

Aos 72 anos Eunice é acometida pelo mal de Alzheimer, que a consumirá ao longo de 14 anos. Ela veio a falecer em dezembro de 2018, aos 86 anos. A interpretação de Eunice foi confiada a duas atrizes de primeira grandeza e - nem poderia ser diferente. Fernanda Torres representa a Eunice, como chefe da família e da grande batalhadora, cabendo a Fernanda Montenegro, por sete ou oito minutos memoráveis, sem uma única palavra, representar os seus momentos finais. Interpretações dignas da vida de lutas de uma grande mulher. A atuação de Selton Mello é destacada por Marcelo Rubens, na mesma entrevista concedida a Juca Kfouri, como a expressão fiel do caráter bondoso, gentil e brincalhão de seu pai. 

E o momento do filme! Não poderia haver melhor e mais oportuno. Após o golpe de 2016, a instável democracia brasileira vive sob o estado de cio dos remanescentes facínoras desse período triste de nossa história. Passamos por um governo horroroso e pela tentativa de golpe do 8 de janeiro e agora, pelo movimento de concessão de anistia para os bandidos depredadores desse mesmo 8 de janeiro (Escrevo no dia 14 de novembro, dia posterior a um novo ato terrorista em Brasília, que provavelmente sepultou esse movimento pela anistia). Foi lançado num momento em que precisamos brigar pela democracia. Walter Salles, com este seu filme, usa do cinema para cultivar a memória nacional e, pelo recurso da arte, nos provoca o horror diante dos fatos que tanto nos envergonham. O filme representa um grande movimento em favor da democracia, do horror às ditaduras com as suas costumeiras torturas, e da permanente luta em favor de um mundo que não perca a sua dimensão de alegria (o sorriso nas fotos), da riqueza das relações e dos ideais de humanidade. 

Um filme, que no dizer de Juca Kfouri, deveria ser passado em praça pública. É um dever de cidadania e humanidade assistir e divulgar este filme. Ele ainda dará muito o que falar por ocasião das festas do Oscar. E - juntos devemos bradar em alto e bom som - Ainda estou aqui. Mesmo porque eles (os facínoras) também ainda estão. E - precisam ser combatidos.

Textos e imagens reproduzidos do blog: www blogdopedroeloi com br

Nenhum comentário:

Postar um comentário