Artigo compartilhado do BLOG DO PEDRO ELOI, de 23 de janeiro de 2016
A sentença de condenação da União pela prisão ilegal, tortura e morte de Vladimir Herzog.
O livro de Audálio Dantas As duas guerras de VLADO HERZOG - Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil, é simplesmente maravilhoso. É um livro de memória e de formação. Ele termina com cinco depoimentos fabulosos das pessoas mais diretamente envolvidas com o caso Herzog. Clarice Herzog, D. Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel, José Mindlin, e do juiz Dr. Márcio José de Moraes. O Dr. Márcio produziu um documento histórico, de 56 laudas, em que condenou a União pela prisão ilegal, tortura e morte de Herzog. A sentença foi proclamada no dia 27 de outubro de 1978, portanto, ainda sob plena vigência do AI-5.
O depoimento me tocou profundamente. Ele é de uma sinceridade ímpar. O Dr. Márcio não esconde os seus medos, superados pelo dever da consciência. Uma questão de formação. Pela sua importância e beleza o transcrevo na íntegra.
"No dia do culto em memória de Herzog eu fui à praça da Sé. Fiquei numa pastelaria, numa esquina lá no fundo da praça. Enquanto comia um pastel para disfarçar, me prevenir de uma abordagem policial, pensava que mesmo assim, sem coragem de me aproximar da catedral, eu avançara bastante. estava, pelo menos, testando o meu medo.
Eu tinha andado apenas uns 200 metros desde o meu escritório, na rua José Bonifácio, até me refugiar na pastelaria. Mas no meu caso, depois de tantos anos de alienação, minha sensação era a de que acabara de fazer uma grande viagem. Eu sentia, no refúgio da pastelaria, que estava começando a ter consciência do horror que o país vivia.
Eu estava ali, com medo, mas sentia que alguma coisa muito importante acontecia naquele momento. Acho que foi o mesmo que aconteceu com milhares de brasileiros. Eu preciso dizer basta à ditadura. Apesar do medo.
A versão oficial, de suicídio, era insustentável, de uma hipocrisia revoltante. Esta revolta moveu a minha consciência e a de milhões de pessoas. Foi um divisor de águas.
Um divisor de águas, certamente, em minha vida. Deixei a banca de advogado e fui prestar concurso para a magistratura. Aprovado, assumi em 1976 o cargo de juiz substituto na 7ª Vara de Justiça Federal em São Paulo. Não podia sequer imaginar que, dois anos depois, cairia em minhas mãos o processo que Clarice Herzog e seus filhos moviam contra a União pela morte de Vladimir.
Avaliei a situação. Estávamos em plena vigência do AI-5 e a mão pesada da ditadura acabara de descer sobre o juiz titular da 7ª Vara, João Gomes Martins Filho, que se preparava para dar a sua sentença, mas foi impedido por uma liminar concedida em mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público da União, no então Tribunal Federal de Recursos.
Senti o peso da responsabilidade que deveria assumir. Eu tinha uma certa noção de que se tratava de um processo de imensa repercussão política e dos riscos que assumiria com ele.
Foi um momento de grande inquietação, de angústia. Debrucei-me sobre o processo. Tinha diante de mim um tremendo desafio. Cabia-me dar a sentença que um velho e digno juiz fora impedido de dar. Eu tinha que ser digno daquele momento.
Tirei férias para mergulhar no trabalho. Deu-se, então, uma revolução interior muito grande. Comecei a me questionar: tenho de encarar esse fato, tenho de ver e rever esse processo para chegar à sentença com dignidade e independência. Mas para chegar à conclusão que antevia, sabia que teria de enfrentar as possíveis consequências. teria que me reformar por dentro, assumir, enfim, todos os riscos.
Passei aquele mês de férias enfrentando a mim mesmo. Trancado em minha casa. No começo, me atormentei, pensando na tragédia de Herzog: "O que aconteceu com esse homem, meu Deus, que tragédia ele viveu em tão poucas horas, as últimas de sua vida? Ele se apresentou à prisão e pouco depois estava morto. Que terror ele sentiu?"
Essas indagações me atormentavam, me tiravam o sono.
Sei que os juízes nem sempre têm relação ativa com seus processos. Mas há casos em que os processos os transformam. Foi o que aconteceu comigo em relação ao caso Herzog. Ao ter o processo em minhas mãos, com a responsabilidade de dar a sentença, me transformei como pessoa. Deixei de comer pastel na esquina.
O que fiz, ao mergulhar no processo, foi o que qualquer juiz consciente deve fazer. Não se pode pegar um processo daquele e folheá-lo como se fosse um monte de papéis burocráticos. Se proceder assim, não será um juiz; será um semeador de injustiça.
Ao tocar os papéis, em determinados processos, o juiz pode fazer o exercício de se colocar no lugar da vítima, perceber que por trás deles há pessoas sofrendo.
Eu não conhecia a senhora Clarice Herzog, mas tinha por ela grande admiração. Admirava-a pela persistência com que lutou para provar que seu marido não se suicidara. Só vim a conhecê-la pessoalmente no fim do ano passado, durante um debate na faculdade de História da USP. naqueles dias, vários eventos se realizaram pela passagem dos trinta anos da morte de Herzog.
Em 1978, logo depois que dei a sentença, a revista Veja me procurou, me ofereceu a capa e as páginas amarelas. Recusei e sugeri que entrevistassem Clarice. Eles fizeram uma grande matéria e puseram a foto de Vladimir Herzog na capa.
Devo dizer, agora, que recusei a capa da Veja não por modéstia; foi por medo mesmo. O peso da sentença era muito grande. No fundo, eu temia uma reação do governo. Afinal, o AI-5 ainda estava na mão deles.
A sentença estava, como era previsível, nas primeiras páginas dos jornais. Sobre ela havia muitas indagações. Uma delas era: como um jovem juiz em início de carreira, em plena vigência do AI-5, ousara condenar a União num processo em que a questão central era a tortura? Outra era se eu tinha lido a sentença que o juiz Martins Filho iria dar às vésperas de sua aposentadoria. Não, nunca li. Nunca, nem antes nem depois de dar a minha sentença.
É importante lembrar as circunstâncias em que o processo veio parar em minhas mãos. No dia 26 de junho de 1978, quando o juiz Martins Filho, titular da 7ª Vara da Justiça Federal, se preparava para dar a sua sentença, chegou de Brasília, por telex, a liminar concedida pelo então presidente do Tribunal Federal de Recursos (TRF), Jarbas Nobre, impedindo a sua leitura.
Com aquilo se pretendia impedir que um juiz em final de carreira desse uma sentença condenando a União. Ele poderia fazer isso por estar em fim de carreira e, portanto, nada tinha a perder. Convinha, assim, que o processo fosse para a mão de um juiz iniciante que, ao contrário, teria tudo a perder. No caso, eu, que era o substituto.
Quando o juiz Martins Filho, um grande homem, me entregou o processo, junto vinha um bilhete que li emocionado: "Mal sabem eles que a sua mão é muito mais forte do que a minha".
Naquele momento, eu tinha uma certeza: tinha de ser digno na tarefa de substituir um homem digno. No processo que ele me entregou, estavam todos os depoimentos candentes das pessoas que passaram pelo DOI-Codi na época em que Vladimir Herzog foi morto. Os depoimentos não deixavam dúvidas sobre a violência da tortura praticada contra os presos. Além disso, havia fortes evidências de que o inquérito que o comandante do II Exército mandara fazer estava repleto de contradições. Logo percebi que a necrópsia que fizeram para atestar o suicídio não era verdadeira. Entre as evidências de sua falsidade estava o fato de que um dos peritos que assinaram o laudo não estava presente no ato do exame pericial, mas o assinou depois, em confiança. Isso era suficiente para a anulação do laudo.
Passo a passo, caminhei na direção da sentença. Durante esse caminhar, encontrei vários colegas que me aconselhavam a ir devagar, que não deveria dar logo a sentença. O AI-5, lembravam, estava em vigor e eles iriam me pegar. Um colega que era deputado federal, Hélio Navarro, argumentava que eu deveria aguardar pelo menos até janeiro do ano seguinte (1979), quando era prevista a extinção do AI-5.
Mas eu tinha, mais do que uma decisão, uma convicção: a sentença deveria ser dada na vigência do AI-5. Assim teria o sentido de um brado de resistência à ditadura e de afirmação do Poder Judiciário. Era, também, uma homenagem ao juiz que fora silenciado.
O caminho percorrido até a sentença não foi fácil. Havia o temor de que algo de ruim pudesse acontecer a mim e à minha família, eu tinha consciência de que poderia estar caminhando para o fim de minha carreira.
Conversei sobre isso com a minha família, explicando o que eu estava temendo. Recebi todo o apoio de minha primeira esposa, Ângela. Havia muitas razões para preocupação. O momento era difícil, delicado pois tínhamos duas filhas pequenas, a Adriana, com 2 anos e a Ana Paula, recém-nascida.
Mas fui em frente. Minha decisão era a de que deveria conduzir o meu trabalho no sentido de chegar a uma sentença com fundamentos jurídicos que lhe dessem o máximo de consistência, que não deixassem margem a contestação. Ela deveria ser desprovida ao máximo de adjetivos. Eu não queria cutucar a ditadura. Se eu podia dar uma tijolada na ditadura, por que iria atirar-lhes pedrinhas?
Quando chegou o dia de anunciar a sentença [27 de outubro de 1978], as preocupações eram maiores. A grande repercussão na imprensa foi acompanhada por algumas ameaças, telefonemas, cartas anônimas. Eu temia, claro, mas considerava improvável um atentado. Tornara-me conhecido, apoiado pela imprensa, pela maioria da opinião pública. Eles podiam ser violentos, mas não eram burros. Um atentado poderia me transformar em mais um mártir. Não convinha.
Restava o temor de ser alcançado pelo AI-5. Poderia ser cassado, e isso significaria o fim de minha carreira.
A sentença que responsabilizou a União pela morte de Herzog atingiu o regime militar em seu âmago, já que ele foi morto num recinto militar. Depois de meditar sobre esse fato durante muitos anos, concluí que nesse episódio, em que, logo depois de Herzog, houve a demissão de um comandante militar da chamada "linha dura", teve início a futura redemocratização do país. Ali se deu, na verdade, a ruptura do Estado ditatorial. Foi o Estado Judiciário condenando o Estado Ditatorial. Rompeu-se, ali, a unidade do Estado repressivo, como um vaso que se quebra e não tem mais conserto".
DANTAS, Audálio. As duas guerras de VLADO HERZOG. Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2012. Páginas 390-394.
Adendo. Em 7 de julho de 2023. O livro de Audálio Dantas Tempo de reportagem, na sua parte final, tem uma entrevista/homenagem, em que ele fala sobre este livro, sobre o assassinato de Herzog, em 1975. Vejamos:
"Eliane Brum: Uma coisa que eu fico curiosa, Audálio. Por que só agora tu resolveste escrever sobre isso? E o que significa esse livro para ti? Porque acho que ele significa muitas coisas.
Audálio: Interessante isso, porque já se escreveram vários livros sobre o caso Herzog, e eu, desde o início - isso foi em 1975 - penso em contar essa história. O que me passou pela cabeça: que estava no olho do furacão. O medo de ser, como acontecia com qualquer um, alcançado, de ser levado para uma das casas de tortura e de assassinatos. Mas aquela história: há momentos em que o medo, ao ser enfrentado, mostra que você precisa ter coragem. É curioso, é uma contradição. É isso o que aconteceu. Então eu fiquei com isso, mas, ao mesmo tempo, havia um bloqueio psicológico muito grande. Como é que eu vou contar essa história? Já foi contada, recontada. Até que chegou o momento, e eu disse: eu vou contar porque eu tenho a minha visão dessa história. Vou contar com outras palavras, ué. Ou então com outros aspectos que não são lá muito conhecidos. O livro não procura trazer novidades, mas contar do meu ponto de vista e do ponto de vista dos companheiros que estavam lá"...
Texto e imagens reproduzidos do blog: www blogdopedroeloi com br
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