A biografia emocional das ideologias
O papel da dor, do medo e da mudança pessoal na transformação das crenças políticas. Paulo Finuras para o Observador:
Vivemos convencidos de que as nossas convicções políticas são o resultado de reflexão racional, leitura informada e valores bem definidos. Supomos que votar à esquerda ou à direita é uma escolha deliberada, feita com base em princípios, ideais ou visões do mundo cuidadosamente construídas. Mas a ciência política contemporânea tem vindo a mostrar algo mais desconfortável, e talvez mais verdadeiro, isto é, as nossas crenças políticas são frequentemente moldadas por aquilo que nos acontece, mais do que por aquilo que pensamos.
A ideologia, longe de ser uma construção puramente intelectual, é muitas vezes uma resposta emocional e adaptativa a experiências pessoais marcantes. Não são poucos os estudos que mostram como determinados eventos da vida (ser vítima de um crime, perder o emprego, ter filhos, enfrentar um sistema de saúde disfuncional ou ser confrontado com a justiça penal) funcionam como gatilhos de mudança política.
Por exemplo, pessoas que são assaltadas ou agredidas tendem, em média, a tornar-se mais favoráveis a políticas de segurança mais duras. Não porque tenham lido novas evidências ou relatórios sobre criminalidade, mas porque sentiram o medo na pele. Do mesmo modo, quem enfrenta um despedimento repentino pode reavaliar as virtudes do mercado livre e passar a ver com outros olhos a importância das redes de proteção social. Ter filhos frequentemente reconfigura as prioridades, favorecendo valores como estabilidade, segurança e tradição, todos associados a orientações políticas mais conservadoras. E enfrentar um internamento hospitalar com custos astronómicos pode transformar rapidamente um defensor do mercado em alguém que advoga por uma saúde pública universal.
Nada disto significa que as pessoas sejam incoerentes ou manipuláveis. Significa apenas que a ideologia não é estática. É plástica, emocionalmente informada e profundamente enraizada nas condições concretas da existência. Não é raro encontrar alguém que, aos 20 anos, era idealista, liberal ou mesmo libertário, e aos 40 revela-se mais conservador, mais pragmático ou mais estatista. O que é que mudou? Muitas vezes, a vida. Simplesmente isso.
Esta perspetiva é reforçada por décadas de investigação na área da psicologia política onde há estudos que mostram que as crenças políticas estão ligadas a padrões emocionais, estilos cognitivos e até predisposições fisiológicas. Indivíduos com maior sensibilidade à ameaça, por exemplo, tendem a preferir soluções de autoridade e ordem. Já os mais abertos à novidade e menos avessos ao risco inclinam-se para posições mais liberais. Mas estas predisposições podem ser ativadas ou suprimidas por eventos significativos. E é nesse ponto que a experiência se sobrepõe à teoria.
Importa ainda reconhecer que as pessoas raramente atribuem estas mudanças à biografia emocional. Preferem contar a si próprias, e aos outros, uma história de coerência e evolução racional. É mais confortável acreditar que mudámos de ideias porque refletimos, e não porque fomos despedidos, assaltados ou diagnosticados com uma doença crónica. Mas os dados contam outra história. A política, como tantas outras dimensões humanas, é também uma resposta adaptativa ao ambiente.
No fundo, talvez o mais importante não seja saber se somos de esquerda ou de direita, liberais ou conservadores, mas antes reconhecer o quanto a nossa trajetória política pode depender daquilo que ainda não nos aconteceu.
“I rest my case”.
Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com
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