quinta-feira, 10 de julho de 2025

A guilhotina como metáfora


Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 9 de julho de 2025

A guilhotina como metáfora

Na cultura woke e na militância universitária, a guilhotina continua sendo vista como símbolo de justiça social – mesmo quando o alvo da lâmina é o pescoço de uma criança inocente. Luciano Trigo para a Gazeta do Povo:

Instrumento de execução criado em 1791, supostamente com intenções humanitárias – por proporcionar uma morte rápida e indolor, em comparação com outros métodos da época – e igualitárias – já que condenados de todas as classes sociais eram executados da mesma maneira – a guilhotina rapidamente se transformou no símbolo do Terror, período da Revolução Francesa marcado pela perseguição e execução em massa de opositores.

Para os jacobinos, ela era a “vingadora do povo”, usada para eliminar inimigos da revolução. Sob a liderança de Robespierre, o Comitê de Salvação Pública e o Tribunal Revolucionário recorreram à guilhotina para consolidar o poder, eliminando qualquer um que se colocasse em seu caminho. A brutalidade era justificada como necessária para proteger a república de seus inimigos.

A radicalização da revolução inaugurou o uso sistemático da violência estatal em nome de um ideal coletivo abstrato, deixando um legado simbólico que vem sendo reciclado desde então. Aos olhos da esquerda radical, a guilhotina passou a representar a pureza revolucionária e a "limpeza" do corpo social. Mas ela também se tornou o emblema sinistro da substituição da justiça pelo moralismo ideológico, com total desprezo pela dignidade individual.

No século 19, movimentos revolucionários frequentemente evocaram a guilhotina como metáfora para a destruição das estruturas de poder opressivas do capitalismo. Marx via os jacobinos como precursores dos comunistas, e mais tarde Lênin comparou Robespierre a um “pré-bolchevique”, legitimando o uso do terror como ferramenta para consolidar o poder proletário.

Mesmo sem o uso literal da guilhotina, a Revolução Russa foi marcada pelo desprezo pela vida individual em nome da transformação do homem e da sociedade. Os expurgos de Stalin, o Holodomor, os Gulags, os julgamentos sumários e as execuções em massa foram o prolongamento e a extensão, em escala industrial, do terror jacobino.

A guilhotina segue sendo, até hoje, um emblema do radicalismo de esquerda e da violência política desmedida, como ilustra o recente episódio do professor universitário que desejou publicamente que uma criança fosse guilhotinada por um motivo fútil: aparecer em uma fotografia usando uma bolsa de luxo. Como todo mundo sabe, só as primeiras-damas têm esse direito. Mas uma criança? Guilhotina nela!

Aparentemente, na cabeça do professor e daqueles que o acompanharam no linchamento virtual da criança e sua família – incluindo uma psicóloga! – o acessório representa um símbolo intolerável de desigualdade social, e sua mera exibição é uma afronta ao povo. Houve quem argumentasse: “Ah, mas foi apenas uma metáfora da resistência contra a desigualdade...”.

Ocorre que, segundo apurou o portal “O Antagonista”, parece que o professor em questão tem um histórico de dezenas de postagens usando a palavra “guilhotina” em contextos semelhantes, incluindo uma que dizia: “Só guilhotina. E não é metáfora”. Isso sugere um padrão na defesa da guilhotina contra pessoas ricas (se fossem de direita, claro) e adversários ideológicos. Mas não é isso que importa aqui.

Da lâmina à linguagem: a guilhotina como metáfora do radicalismo contemporâneo

Metáforas são às vezes mais graves e poderosas que o uso literal das palavras. E, metafórico ou não, a postagem do professor revela algo assustador: a permanência da guilhotina no imaginário político da esquerda, o fascínio pelo extermínio em nome do bem, a legitimação (ainda que simbólica) do recurso à violência como forma de purificação do mundo.

A naturalidade com que se propõe – ainda que metaforicamente, repito – a execução de uma criança por usar uma bolsa de griffe expõe uma falha moral profunda disseminada no ambiente acadêmico: o deslocamento da indignação legítima com a desigualdade para o sadismo ideológico contra bodes expiatórios, como mecanismo de compensação.

O que antes era um instrumento para cortar a cabeça de monarcas, é hoje “ressignificado” como ferramenta para punir qualquer um que ouse divergir da nova ortodoxia moral. Na cultura woke e na militância universitária, a guilhotina continua sendo vista como símbolo de justiça social – mesmo quando o alvo da lâmina é o pescoço de uma criança inocente. Porque, para a militância, uma criança rica não é uma criança: ela representa o “inimigo de classe”.

A violência física foi substituída pela violência simbólica, mas continua sendo violência. A guilhotina metafórica da cultura do cancelamento e das manifestações anticapitalistas ou identitárias é a expressão contemporânea do ressentimento e do desejo de extermínio daqueles que são percebidos como privilegiados.

Em vez de buscar soluções reais para a desigualdade, encenam-se revoluções estéticas e retóricas, onde a violência simbólica contra “os ricos”, “os brancos”, “os héteros”, “os capitalistas” etc. serve como uma catarse coletiva, que só serve para compensar a ausência de políticas eficazes de redução da pobreza. Enquanto isso, diga-se de passagem, as verdadeiras elites estão cada vez melhor.

É nesse contexto que se forja a mentalidade que equipara opulência, sucesso individual e liberdade de expressão a formas intoleráveis de opressão, que precisam ser “decapitadas”, seja nas redes sociais, seja nos tribunais. A execução precisa ser rápida, sumária e, sobretudo, moralmente justificada por seus proponentes.

O cancelamento, a perseguição e as campanhas de difamação de desafetos são formas contemporâneas de linchamento que, na essência, se equiparam à guilhotina. Na essência, a intenção é a mesma: exterminar o outro, física ou simbolicamente.

No Brasil de hoje como na França de Robespierre, vigora o princípio que marca todos os experimentos radicais de esquerda ao longo da História: a crença de que a virtude política justifica a violência, mesmo contra inocentes, porque a sociedade igualitária só pode nascer por meio da destruição completa da ordem vigente. O radicalismo que celebra a guilhotina não quer mudar o mundo: quer destruí-lo.

A guilhotina ressurge, assim, como avatar de um moralismo autoritário travestido de justiça social, que torna moralmente aceitáveis até mesmo postagens sádicas contra crianças. Ela é, ao mesmo tempo, instrumento e metáfora do que acontece quando a educação é sequestrada pela doutrinação e quando a justiça é sequestrada pela ideologia.

Voltando à História

Voltando à História. O primeiro guilhotinado, já em abril de 1792, foi Nicolas-Jacques Pelletier, condenado por roubo e assassinato. Nos três anos seguintes, sob o comando de Robespierre e dos jacobinos, entre 20.000 e 30.000 franceses perderam literalmente a cabeça, incluindo o rei Luiz XVI e a rainha Maria Antonieta.

Em uma violenta campanha de repressão contra os “inimigos do Estado de direito” da época, milhares foram para o patíbulo por crimes de opinião, já que a liberdade de expressão não podia ser usada como pretexto para atacar o governo do povo.

Mas a História mostra que o uso do terror como ferramenta política raramente leva à estabilidade duradoura, como fica evidenciado pela execução de líderes revolucionários como Danton e o próprio Robespierre – que também acabaram sendo guilhotinados.

Ou seja, a guilhotina é sim uma metáfora, mas não da luta pela igualdade. É uma metáfora da paixão justiceira descontrolada, que sempre se alimentou de sacrifícios humanos: reis, nobres, hereges, burgueses e até crianças. A moral de quem prega o uso “metafórico” da guilhotina é a mesma moral que alimentou regimes totalitários, revoluções fracassadas e o atual culto à ostentação de virtude e à indignação performática.

Mas toda vez que a política abandona a tolerância com quem pensa de forma diferente, toda vez que o outro passa a ser percebido como inimigo a ser eliminado, a guilhotina (literal ou simbólica) sai do controle. A lição da História é clara: a violência revolucionária sempre se volta contra seus proponentes, a revolução sempre devora seus filhos. É questão de tempo.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com 

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