terça-feira, 16 de setembro de 2025

Um novo fim da História

Artigo compartilhado do BLOG DO ORLANDO TAMBOSI, de 15 de setembro de 2025

Um novo fim da História

A esquerda perdeu a gramática porque trocou o cidadão por identidades ficcionais e policiamento moral. A direita populista conquista terreno porque parece corajosa onde a esquerda surge como culpada. Rodrigo Adão da Fonseca para o Observador:

O assassinato do “influenciador” Charlie Kirk por um outro jovem, Tyler Robinson, bem como muitas das reações de apoio à morte que se seguiram, são a metáfora perfeita do colapso em que boa parte da esquerda se encontra. A esquerda não está apenas a perder eleições, está a perder gramática. Tem perdido protagonistas de uma forma acelerada, mas não apenas, em poucos anos perdeu verbo, já não dispõe de um vocabulário convincente para nomear o que dói na sociedade nem de uma sintaxe capaz de ordenar prioridades. E, na dialética que tem vindo a manter nos novos palcos mediáticos, é uma nova direita populista, tecnicamente mais competente na linguagem das redes, quem tem sido capaz de expor o impasse moral e programático da esquerda. O fim do “wokismo” parece irreversível, porque as suas causas estão visivelmente esgotadas. Mas, se por um lado, é sempre de celebrar a falência da que tem sido a derradeira tentativa da esquerda sublimar a luta de classes para as novas gerações, importa não esquecer que um vazio raramente fica vazio, e o que se segue não parece ser necessariamente bom.

A genealogia é conhecida. A esquerda nasceu como resposta à brutalidade das primeiras fábricas e à proletarização do trabalho, mas cedo quis ser mais do que um remédio social: ambicionou uma teleologia redentora, um “Homem Novo” fabricado pela História. De tanto querer moldar as sociedades, o marxismo acabou em tortura e não em liberdade. No fracasso dos socialismos, as sociais-democracias reformistas ganharam protagonismo na ilusão de que domando o capitalismo haveria progresso social. Durante quatro décadas, uma juventude demográfica, energia barata e produtividade em alta, permitiram consolidar uma classe média larga com escola, casa e expectativa de mobilidade. A social-democracia, porém, nunca foi de boas contas, e dependente de ventos externos, resistiu mal aos ciclos longos: quando a demografia inverteu, a globalização se intensificou e a dívida se tornou crónica, a máquina parou. E a esquerda, incapaz de redefinir a sua base material, refugiou-se no simbólico, inventando novos proletários em causas identitárias.

A mutação foi profunda: abandonando o universalismo social, os socialismos balcanizaram-se no nicho das “identidades”. Onde antes havia um cidadão comum, passaram a existir categorias morais com léxicos próprios, liturgias, ofensas e absolvições. As universidades, os media, e uma boa parte da indústria cultural exportaram essa ortodoxia para a política. Com o passar do tempo, o cidadão comum, abandonado pelos apóstolos da esquerda, foi percebendo que este novo puritanismo estava mais atento à fonética do que às rendas, mais preocupado com supostas microagressões do que com os salários. O “wokismo” falhou desde logo por confundir reforma com catequese e reduzir a igualdade a uma política de linguagem na qual a maioria das pessoas comuns não se revê, não compreende, e à qual adere apenas por imposição social, corporativa, ou receio de consequências.

O digital tem vindo a tratar do resto. Na economia da atenção, o vazio não permanece vazio. É de imediato ocupado por narcisos em série, calibrados pelo algoritmo, num espaço onde as pertenças se tornam frágeis, efémeras e voláteis. O funcionamento atual das coisas revela-se profundamente contranatura para quem continua a pensar o mundo na tradição organizativa de matriz trotskista, estruturada em círculos, assembleias, corpos e disciplina doutrinária. A esquerda tem-se revelado incapaz de sobreviver num tempo em que o essencial é a performance de um perfil. A pandemia não originou esta mutação, mas acelerou-a, impondo ainda mais redes sem bairro, mais causas sem vizinhança e mais comunidades sem enraizamento. Quando regressámos à pólis, o músculo associativo e a convivência estavam já atrofiados, e a vida tornou-se ainda mais difícil para quem sempre dependeu da mediação e da organização, sem capacidade de transmutação para o ambiente líquido das redes sociais.

Entretanto, e com as sucessivas crises, as novas gerações andam a fazer contas à vida. O contrato intergeracional – “estuda, trabalha, progride” – está fragilizado. Com a habitação a atingir preços impraticáveis, os serviços públicos fatigados, as carreiras em suspenso, impostos sem retorno visível, e a ameaça das novas tecnologias de base cognitiva, a esquerda não oferece solução. Já não soa a futuro; soa ao fracasso do passado. Deixou de ser revolucionária para ser burguesa. A sua ambição tornou‑se retórica; a sua retórica, burocrática; e a sua estética, datada. Numa cultura de velocidade, memes e ironia, o moralismo perene feito de uma estética e de uma linguagem “fora de moda”, é um convite à deserção.

É por esse flanco que entra a nova direita populista. Não traz um tratado económico, mas imagética, ritmo e fricção. É ágil a transformar irritação difusa em narrativa, fala “normal”, promete ordem sem professorado, oferece pertença sem vigilância semântica. Percebeu que a luta política regressou ao domínio metapolítico – símbolos, tribos, humor – e joga aí com destreza. Ganhou a batalha cultural porque a esquerda confundiu progressismo com gestão de sensibilidades e abandonou o território mais difícil, o de se posicionar onde estão as preocupações das pessoas, em vez de lhes impor vanguardas sem sentido.

Convém, como já referi, que aprendamos com os erros de Fukuyama e o alívio com o ocaso do “wokismo” não se converta em euforia. Porque estamos a substituir as vanguardas falidas da esquerda por um populismo que se limita a converter a política numa administração do ressentimento. Onde a esquerda quis reeducar, a direita quer vingar; onde a primeira policiou palavras, a segunda está a normalizar a grosseria confundindo-a com autenticidade. A substituição de uma ortodoxia por outro culto – o da força, da fronteira identitária invertida, da pureza nacional – não é progresso. É apenas a simetria do erro.

A esquerda perdeu a gramática porque trocou o cidadão por identidades ficcionais e policiamento moral. A direita dita populista está a conquistar terreno porque parece corajosa onde a esquerda surge como culpada. Nada disto, porém, garante melhor governo. A energia do meme não constrói infraestruturas. A raiva dá votos, mas não dá resultados. O que não vislumbramos é capacidade de recompor a esfera comum, com ambição e pluralismo.

Não sei se vamos a tempo de evitar um período negro feito de vingança e ressentimento, mas se há ainda uma hipótese, ela passa por um sentido de compromisso que tem faltado ao poder político, na assunção radical das suas responsabilidades no domínio do concreto. É mesmo fundamental reabilitar o contrato social e cuidar da coisa comum – segurança, escola, saúde, justiça, habitação – com mais sentido de missão e menos slogan. Substituindo a política de sinais por uma política com efetivos resultados.

O “wokismo” esgotou‑se porque desertou da realidade. A nova direita vai arruinar-nos porque a realidade serve-lhe apenas como pretexto para impor um outro tipo de policiamento moral. Entre a catequese e a vingança, a democracia liberal só sobrevive com adultos. Com menos liturgia e mais obra. Com menos pureza e mais decência. Com menos ruído e mais “mundo”. Se a política voltar a falar esta língua, a batalha cultural não será mais um concurso de moralistas e regressará ao que nunca deveria ter deixado de ser: um confronto sério sobre a melhor forma de aumentar a liberdade real e o bem-estar das pessoas comuns. Haja protagonistas, haja gramática.

Texto e imagem reproduzidos do blog: otambosi blogspot com

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